sexta-feira, 28 de julho de 2017

Tchau à mulher goiabada- A mulher na obra de Lygia Bojunga



LYGIA Bojunga Nunes se destaca dentre as autoras brasileiras por suas narrativas fascinantes. Falar de um dos aspectos de sua obra é mutilá-la, é deixar de lado todo um universo a explorar. Mesmo assim, escolhi falar sobre a imagem da mulher que nela encontramos, parte da preocupação com o ser humano em geral, independente do sexo, que se percebe em sua obra.A princípio, é preciso que se assinale a abundância de personagens femininas mas também a variedade de personagens masculinas. Esta é uma primeira constatação : as questões femininas ,na obra desta autora, nos aparecem , várias vezes, sob ângulo masculino.Outra observação feita foi a de que há várias mulheres habitando a obra bojunguiana. Algumas delas aparecem em narrativas diferentes, outras, apenas se apresentam, dizem um verso e vão embora ...Há também a discussão de vários aspectos do feminino. Há questões que se ligam à identidade, à sua colocação no mundo, na sociedade; há a necessidade de se manifestar, enquanto criadora ; há a relação homem/mulher, há a discussão de estereótipos femininos .
Esta comunicação pretende investigar a presença feminina na obra de Lygia Bojunga Nunes , desde Os Colegas até Tchau!, obra que entendo como um marco na ficção infanto-juvenil no que diz respeito à imagem feminina, devido às situações ímpares que as narrativas contidas nessa obra apresentam.
Desde a sua primeira obra, Os Colegas, editada em 1972, as personagens femininas de suas narrativas merecem destaque. A personagem Flor ( de Lis), uma cachorrinha de raça, é capaz de se despojar das marcas de riqueza que a cobriam em troca de sua liberdade, de sua verdadeira identidade , pois os adereços impostos por sua dona já a faziam duvidar que fosse realmente uma cachorra . Depois, numa demonstração de coragem, é capaz também de sacrificar-se em nome da amizade que tem pelos companheiros. É ela a autora da idéia que será colocada em prática, para tentar salvá-los. Essa mulher que aparece zoomorfizada na pele de Flor pensa , age , resolve os problemas, é uma mulher valente, destemida sem deixar de ser feminina, embora não se caracterize pela situação materna. Ela é apenas um dos colegas, que lutam pela sobrevivência, independente de ser homem ou mulher. Laura Sandroni, em seu estudo sobre a obra dessa autora, aponta a crítica à "representação caricatural do feminino às classes sociais",[1] encontradas nas palavras da dona de Flor, que quer " uma cachorra caríssima e de raça puríssima, pra todo mundo achar linda e saber quanto custou." (p.13)Percebe-se que Flor aparece como a mulher que é exibida como um troféu. A esta imagem de mulher é que Lygia faz crítica, mostrando a cachorrinha feliz por se livrar de todos os apetrechos que não a deixavam ser quem realmente era. A mulher-objeto não tem mais lugar.
Angélica, a segunda obra de Lygia, de 1975 - traz uma cegonha-mulher como protagonista . Mais uma vez a autora discute questões femininas através da figura de animais . As mulheres dessa história - Angélica, Jandira e Mimi - são diferentes e cada uma representa um aspecto do feminino. Angélica é a mulher segura de si, que não vê problema algum em pagar a conta do restaurante para o namorado , que sai em busca de seus direitos, principalmente o de lutar pelo que acredita. Ouçamos sua conversa com Porto :- Puxa, que vergonha.- O quê?- Você pagou a conta pra mim.- Ué, se você pagasse pra mim eu não ia achar vergonha nenhuma .- Ah, mas é diferente.(...)- Porque é o homem que tem sempre que pagar: é isso.- Ih, Porto, essa idéia é tão antiguinha ! (p.43)Em contraste com as atitudes de Angélica , a Mulher-do-Jota passa a narrativa inteira submissa ao marido, por isso sequer lhe sabemos o nome. Deixa-se esmagar pelo autoritarismo do marido, cujo discurso machista é inconfundível :- Mas eu vou sozinho.: minha mulher fica em casa.- Ah Jota ! disse a mulher toda triste. Quis dizer muito mais, mas as palavras trancaram na garganta e só que conseguiu sair foi uma lágrima pequenina.- Ah o quê? Lugar de mulher é dentro de casa cuidando dos filhos, pronto, acabou-se! Não é, Canarinho?- Mas , Jota ,[2] esse negócio de mulher não poder trabalhar já era !- Pra mim continua sendo, pronto, acabou-se.Somente no final da narrativa consegue impedir que o marido fale por ela e revela seu nome - Jandira - afinal a sua identidade. Há um caminho percorrido, há conquistas que devem ser levadas em conta, há questões sobre a relação entre o casal.A outra mulher , Mimi-das-perucas, é a representante da mulher desmiolada, vaidosa ao extremo, consumista, que vive em salões, em compras e só valoriza a aparência, sem notar que seus desejos exagerados fazem mal ao marido, que é obrigado a abrir mão daquilo com que gosta de trabalhar para poder satisfazer os caprichos da esposa. Esta acaba por se consumir a si própria, já que não pára de consumir tudo, e um dia , " ficou tanto tempo debaixo daquele secador que os cabeleireiros usam, que secou a peruca, a cabeça, Mimi toda secou e morreu."(p.93) . 
Tanto Jandira (a princípio) quanto Mimi podem ser vistas como representantes de um padrão feminino que não assume responsabilidades, que se porta como uma menina, denominado por Linda Schierse Leonard de "puella aeterna ", a menina que não cresce , que precisa de ajuda para assumir sua identidade mulher. Esse padrão se repetirá em várias outras personagens, como veremos depois.
Também em A bolsa amarela, de 1976, surgem questões que dizem respeito ao relacionamento homem/mulher . A "vontade de ter nascido garoto em vez de menina", que aparece na primeira página da narrativa, já dá o tom que encontraremos em seu desenvolver. Mas ela não vem sozinha e duas outras vontades fortes se apresentam juntas : ' a de crescer de uma vez e deixar de ser criança" e a "vontade de escrever" Das três vontades de Raquel, duas passarão a ser temáticas constantes na obra desta escritora : as relações homem/mulher e a mulher/escritura .Raquel não se conforma de não poder fazer coisas que são só para meninos, deseja libertar-se de um modelo comportamental estabelecido, inclusive contra a instrução feminina. Ouçamos a sua voz :Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto, todo mundo faz pouco de mim e diz que é coisa pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a gente bobear e fica burra: todo mundo tá sempre dizendo que vocês têm que meter as caras no estudo,, que vocês é que vão ser chefes de família, que vocês é que vão ter tudo. Até para resolver casamento - então eu não vejo - a gente fica esperando vocês decidirem.[3]O discurso feito por Raquel é condizente com as reivindicações das mulheres na década e setenta, quando o movimento hippie incorporou às idéias de Betty Friedman valores baseados na igualdade entre as pessoas, qualquer que fosse a sua raça, sexo ou cor. No entanto, afinal, "a vontade de ser menino emagreceu tanto que foi embora" , o que nos mostra que a menina assumiu sua identidade feminina, sem reservas , por isso poderá crescer normalmente . Por outro lado, ela encontra na escrita a realização que busca na vida real. O mundo de fantasia passa a ocupar um lugar importante em sua vida, tanto que a vontade de escrever é a única que fica com ela , como podemos observar mais adiante :"- E a tua vontade de escrever?- Ah, essa eu não vou soltar. Mas sabe? Ela agora não pesa mais nada: agora eu escrevo tudo que eu quero, ela não tem tempo de engordar."Se lembramos as dificuldades que a mulher teve para conquistar seu direito de escrever, perceberemos que esta é outra questão feminina constante na obra desta autora. Norma Telles, em seu texto Escritoras, Escritas, Escrituras[4], nos fala sobre a dificuldade da mulher de passar de musa à criadora, uma vez que este papel era destinado ao homem e a mulher, para assumi-lo, teria que "matar o anjo do lar, a doce criatura que segura o espelho de aumento, e teria de enfrentar a sombra, o outro lado do anjo, o monstro da rebeldia ou da desobediência." Portanto, é importante que Raquel tenha assumido sua identidade feminina junto com seu lado criativo, mostrando que é possível ser mulher e criadora. Assim como Raquel consegue se libertar do papel secundário destinado à mulher na escrita, outras personagens também o farão, como veremos adiante, e não mais precisarão , como as mulheres goiabadas, esconder seus escritos entre os cadernos de receitas, domínio exclusivamente feminino.Ainda considerando a relação homem/mulher , outra personagem interessante é o galo Afonso, pois traz em seu discurso, sob a ótica masculina, uma questão importante: as mulheres queriam realmente mudar ?Então eu chamei as minhas quinze galinhas e pedi, por favor, pra elas me ajudarem. Expliquei que vivia muito cansado de ter que mandar e desmandar nelas todas noite e dia. Mas elas falaram: Você é nosso dono. Você é que resolve tudo pra gente. Sabe, Raquel, elas não botavam um ovo, não davam uma ciscadinha, não faziam coisa nenhuma, sem vir perguntar :"Eu posso? Você deixa?" E se eu respondia: " Ora, minha filha, o ovo é seu, a vida é sua, resolve como você achar melhor", elas desatavam a chorar, não queriam mais comer, emagreciam, até morriam. Elas achavam que era melhor ter dono mandando que ter que resolver qualquer coisa. Diziam que pensar dá muito trabalho.[5]Observe-se que esse comportamento era apresentado por muitas mulheres da época, que não tinham sido criadas para a nova condição feminina e não poderiam sequer pensar em assumir responsabilidades e tomar decisões. Novamente o padrão da puella se apresenta : são mulheres que não cresceram e precisam da proteção do homem para que se sintam seguras.
Corda Bamba, de 1979, traz uma série de questões relativas à mulher, a começar pela figura da Mulher Barbuda, ser híbrido que por aparentar a masculinidade através da barba, não perde o instinto feminino e nem o respeito de seu marido que " ach(a)o legal! Nem eu me importo dela ter barba, nem ela se importa d'eu engolir fogo." (p.12) . A barba , segundo Jean Chevalier, é o "símbolo da virilidade, de coragem, de sabedoria" [6], por isso " as rainhas egípcias são representadas com barba, como sinal de poder igual ao rei."Essa igualdade de poder é percebida através do respeito mútuo entre o casal, que tem características distintas , apreciadas como pertinentes à identidade de cada um. Foguinho apresenta a sensibilidade feminina para as coisas simples da natureza, como o soprar do vento, o movimento das marés, o nascimento das estrelas ...enquanto sua mulher ostenta uma barba. Assim , as diferenças os completam, sem disputas entre eles.A avó de Maria traz outro aspecto interessante da mulher : fora casada quatro vezes, mas ainda assim está só. A razão disso : dona Maria Cecília de Melo Mendonça queria mandar nos maridos. Quem nos narra sua história é a velha contadora de histórias, comprada de presente para Maria:Só sei que um dia, Dona Maria Cecília Mendonça de Melo, que não gostava de homem de barba, que não gostava do nome Pedro, que não gostava de homem com mania de trabalhar, encontrou um homem de barba chamado Pedro e trabalhando pra chuchu. Ele começou a gostar dela e pediu ela em casamento. Ela ficou tão espantada de ser pedida em vez de pedir, que topou. E quando foi querer mandar nele, ele falou: nem eu mando em você nem você em mim. mas ela cismou que era ela que mandava, e que ele tinha que raspar a barba, e que ele tinha que trocar de nome, e que mais isso e mais aquilo, e aí um dia ele falou :tchau! Só volto quando você parar com essa mania de querer mandar em mim.[7]Observa-se que a relação entre o casal é prejudicada pela necessidade de um mandar e, neste caso, a mulher. Dessa forma, Lygia Bojunga traz de novo o lado masculino da relação entre o casal. A mulher não é só a vítima, ela pode ser também a razão de discordância, pode ela própria dificultar uma relação de igualdade. Ao retomar a barba, a autora parece querer nos dizer que ser masculino não significa necessariamente o poder, pois Pedro, aquele que a tem, é quem propõe a igualdade de direitos, negada por Maria Cecília. Esta representa o padrão "amazona de couraça" apontado também por Linda Leonard, mulheres que , à primeira vista, são confiantes, forte, poderosas, mas que se revelam solitárias e imensamente assustadas, por trás da couraça.
De 1980 é O sofá estampado, em que a autora retoma as personagens zoomorfizadas . As fêmeas, também nesta narrativa , representam vários aspectos do feminino. Temos, por exemplo, a dona-de-casa retomando a imagem da mulher fútil, que só se preocupa com as aparências e , por isso, deve combinar tudo. Ela possui uma gata angorá que a complementa , pois passa o dia todo frente à televisão e vê na propaganda os sinais de status necessários para viver : tem que comprar tudo. Essas mulheres desmioladas se opõem à figura da avó de Vítor, uma mulher inquieta, que não nega sua condição feminina , mas não deixa que sua curiosidade e a vontade de ver o mundo morram em seu peito, já que "Desde pequena ela tinha vontade de viajar, queria por força conhecer o mundo. E queria conhecer tudo de tatu ; como eles eram antigamente, o que eles comiam, onde é que tinha vivido o primeiro tatu. Foi ser bandeirante, excursionista, bolsista.(...) Estudou arqueologia, viajava cada vez mais longe.. "[8]Depois que o marido, companheiro de viagens, morreu, ela teve que parar, pois deveria criar sozinha os filhos. Portanto, não foge a seu papel de mãe e somente quando o último filho se formou, ela chamou os cinco e anunciou: " Bom, meus queridos, vocês estão com a cabeça cheia de idéias, estão com saúde, daqui pra frente cada um se vira à vontade, tá? - Tirou a poeira da mala e voltou a viajar. " (p.50)Mais uma vez a autora parece nos mostrar que, para assumir sua identidade, a mulher não precisa negar sua condição feminina , desde que haja vontade de conciliar , desde que o preconceito não fale mais alto. Esta é uma mulher saudável, que não desenvolveu nenhum dos padrões patológicos apontados por Linda Leonard.Outra personagem interessante nesta obra é Pôzinha., uma hipopótama que se apaixona por Ipo, para quem começa a trabalhar e ganha muito dinheiro. Com o tempo, Ipo a afasta de si, levando em conta apenas seu trabalho. Aos poucos Pôzinha se ergue, estuda administração de empresas à noite, funda uma agência de publicidade e se torna rica. Só que neste processo, para compensar a carência afetiva, transforma-se em uma "workholic", uma viciada no trabalho, como tantas mulheres já o são : suas mágoas são canalizadas para força de trabalho , que , afinal , não preenche o vazio. Essa também é uma personagem que se encaixa no padrão da amazona de couraça, pois embora se mostre irredutível quanto à necessidade de lucro, de se auto-afirmar, revela-se magoada a ponto de procurar o inventor da máquina de transformar a mágoa em algo positivo.
Este longo percurso até chegar a Tchau! , obra que nomeia esta comunicação, nos apresentou diversos enfoques do feminino, mas em nenhum deles havia o rompimento com a imagem de mãe apontada pela burguesia , em que era "considerada base moral da sociedade, (a mulher de elite), a esposa e mãe da família burguesa deveria adotar regras castas no encontro sexual com o marido, vigiar a castidade das filhas, constituir uma descendência saudável e cuidar do comportamento da prole."[9] Nesse percurso, a autora procura mostrar as possibilidades de convivência entre os vários aspectos femininos.Nesta obra, composta por quatro contos, também encontramos várias faces do feminino, inclusive aquelas já percebidas em outras narrativas, como a mulher escritora, que surge em A troca e a tarefa, em que a escritura se torna fundamental na vida da mulher , a ponto de as duas terem o mesmo fim: acabam juntas.
Em O bife e a pipoca a mulher dona-de-casa é retomada, aquela que se mostra preocupada apenas com o tapete manchado, onde caiu o bife de Tuca que, por vergonha, não consegue pedir mais comida. Quando a empregada pergunta se seria necessário servir de novo o garoto, a mãe responde : " Será que é preciso? - Examinou o tapete. - Passa a escova pra ver se não ficou nenhuma manchinha." (p.37) Ela não tem a sensibilidade de perceber o embaraço do menino, sua única preocupação é a limpeza do tapete. Por outro lado, a mãe de Tuca nos traz um aspecto do feminino que não surgira na obra bojunguiana até então : a mulher degradada. É Tuca quem nos conta :Quando a minha irmã tranca a minha mãe daquele jeito é porque minha mãe já tá tão bêbada que faz qualquer besteira pra continuar bebendo mais. - Começou a sacudir o Rodrigo. - Você olhou bem pra cara dela, olhou? Pena que ela não tava chorando e gritando pra você ver. Ela chora e grita ( feito nenem com fome) pedindo cachaça por favor. (p.41/42)Essa mulher da favela, tão distante daquela preocupada com o tapete, traz para a literatura infanto-juvenil uma imagem que faz parte da realidade de várias crianças, não somente das pobres, mas ela não é comum na literatura. Mais uma vez tem-se a impressão de que a autora não quer deixar de lado nenhum aspecto do feminino e é por isso que traz a figura da Mãe, mulher sem outra identidade, nomeada apenas assim, com letra maiúscula e tudo.
A Mãe, de Tchau! , mais que uma personagem da literatura , personifica a condição feminina de mulher, que se apaixona e é capaz de deixar a família, os filhos, para viver o seu amor. Irônico então é o nome atribuído à personagem .Na condição de mãe de duas crianças, seria esperado dela que desempenhasse o papel de Hera, "protetora das mulheres casadas legitimamente"[10], que tentasse manter sua família unida, que lutasse contra possíveis paixões do marido. No entanto, é ela quem conhece outro homem, é ela que se apaixona por um grego - não por acaso - e deixa o lar, a despeito dos pedidos do marido e da filha. A luta entre Hera e Afrodite parece se concretizar nesta personagem, que se vê arrastada pelo amor erótico - talvez o próprio Eros, em forma de grego - e abandona o lar. É a Mãe que nos conta sobre a paixão que sente por esse homem :Se ele me diz, vem te encontrar comigo, mesmo não querendo eu vou; se ele fala que quer me abraçar, mesmo achando que eu não devo eu deixo; tudo que eu faço de dia, cuidar de vocês, da casa, de tudo, eu faço feito dormindo: sempre sonhando com ele; e de noite eu fico acordada, só pensando, pensando nele. (...) só de chegar perto dele eu fico toda suando, e cada vez que eu fico longe eu só quero é ir pra perto, Rebeca! Rebeca! Eu tô sem controle de mim mesma.[11]Ao nomear essa personagem de Mãe e fazê-la apaixonar-se tão perdidamente por esse homem, Lygia Bojunga parece querer afirmar a existência da mulher por trás ( ou à frente) da mãe. Ela é Mãe, mas é também Mulher . A mulher, talhada pelos valores burgueses, em sua condição de quase santa e assexuada, não é a que encontramos. Então, percebemos que estamos diante de outra faceta feminina, que ainda não surgira na obra desta autora e muito menos em de outros tantos autores.Interessante também é notar que ao conversar com o pai , Rebeca se refere à mãe, com letra minúscula, ou seja, não é mais a identidade feminina que encontramos, como no início da narrativa, mas o papel desempenhado dentro da família. Interessante também é constatar que esse pai se revela fraco, sente-se impotente diante da possibilidade de criar os filhos sozinho, e transfere para Rebeca a responsabilidade de reter a mãe em casa. Chantagem pura.Essa faceta feminina existe, por isso é mostrada por Lygia Bojunga, independente do leitor a que se destine a obra, no entanto, não podemos deixar de perceber que a concepção desta personagem parece romper um trato feito , há muito tempo, entre escritores de obras para crianças, de construir uma imagem feminina idealizada, em que a figura materna se sobreponha a qualquer outro aspecto desse ser.Considerações finaisApós a leitura da obra de Lygia Bojunga Nunes, percebe-se que a imagem feminina se revela sob vários aspectos , como em um poliedro: há várias faces que compõem o todo. Essa visão cubista se constrói porque a autora não se limita a apresentar a mulher sob uma ótica feminista ou machista. Na verdade, parece querer deixar ao leitor a possibilidade de construir a sua imagem., reafirmando a impossibilidade de determinar-lhe um único perfil.Suas faces se multiplicam , se perpetuam nas diversas personagens não citadas, aqui, por absoluta falta de espaço.
 É o caso de obras como O meu amigo pintor, em que cada mulher deveria ter uma face, e naõ ser "assim sempre igual" ou em Seis vezes Lucas, narrativa habitada por várias mulheres.Apesar desta diversidade, a obra Tchau! se destaca do conjunto pela singularidade das imagens que apresenta, principalmente no conto homônimo e em O Bife e a pipoca. Entendo que a autora, ao romper barreiras e trazer para a literatura infantil as imagens dessas mulheres, demonstra a necessidade de que a mulher seja vista , também na literatura, como um todo, não a partir de estereótipos pré-estabelecidos pela sociedade burguesa.Assim, a obra de Lygia Bojunga Nunes revela-se imensamente rica para a reflexão sobre o papel da mulher no mundo, na sociedade. Poucas são as autoras que conseguiram mostrar a mulher de modo tão completo; poucas são as autoras que permitem, assim como ela, que cada leitor escolha seu caminho neste fascinante bosque que nos apresenta.



Notas:
[1] SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga. Rio de Janeiro : Agir, 1987. P.120.
[2] NUNES, Lygia Bojunga. Angélica. 18ed.Rio de Janeiro : Agir, 1995.p.89/90
[3] NUNES, Lygia Bojunga . A Bolsa Amarela. São Paulo : Agir, 1986.p.16.
[4] História das Mulheres no Brasil, São Paulo : Contexto, 2000. página 408.
[5] Idem, p.35.
[6] CHEVALIER,Jean& GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. São Paulo : José Olympio, 1988p.121.
[7] NUNES, Lygia Bojunga.Corda Bamba, 15ed.Rio de Janeiro: Agir,1993. p.102
[8] NUNES, Lygia Bojunga . O sofá estampado6ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1985.p.49
[9] História das mulheres no Brasil, página 230.
[10] KURY, Mario da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro :Jorge Zahar Editor. , p.180.
[11] NUNES, Lygia Bojunga. Tchau! 4ed.Rio de Janeiro: Agir, 1989. P.14.

Referências Bibliográficas

1. CHEVALIER,Jean& GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. RJ : José Olympio, 1988.
2. História das mulheres no Brasil . org. de Mary del Priori. São Paulo : Contexto, 2000.
3. LEONARD,Linda Schierse.A mulher ferida. São Paulo : Saraiva, 1990
4. NUNES, Lygia Bojunga . A Bolsa Amarela. Rio de Janeiro : Agir, 1986.
5. _____ Angélica. 18ed.Rio de Janeiro : Agir, 1995.
6. ___ Corda Bamba, 15ed.Rio de Janeiro: Agir,1993.
7. ___ Os colegas. 11ed.Rio de Janeiro : José Olympio, 1983.
8. _____ Tchau! 4ed.Rio de Janeiro: Agir, 1989.
9. SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga. Rio de Janeiro : Agir, 1987.
10. KURY, Mario da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro :Jorge Zahar Editor. ,
**Observação: A imagem da postagem é uma pintura Rococó, entitulada "A leitora" do artista do pintor francês Jean Honoré Fragonard.

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