sexta-feira, 28 de julho de 2017

Tchau à mulher goiabada- A mulher na obra de Lygia Bojunga



LYGIA Bojunga Nunes se destaca dentre as autoras brasileiras por suas narrativas fascinantes. Falar de um dos aspectos de sua obra é mutilá-la, é deixar de lado todo um universo a explorar. Mesmo assim, escolhi falar sobre a imagem da mulher que nela encontramos, parte da preocupação com o ser humano em geral, independente do sexo, que se percebe em sua obra.A princípio, é preciso que se assinale a abundância de personagens femininas mas também a variedade de personagens masculinas. Esta é uma primeira constatação : as questões femininas ,na obra desta autora, nos aparecem , várias vezes, sob ângulo masculino.Outra observação feita foi a de que há várias mulheres habitando a obra bojunguiana. Algumas delas aparecem em narrativas diferentes, outras, apenas se apresentam, dizem um verso e vão embora ...Há também a discussão de vários aspectos do feminino. Há questões que se ligam à identidade, à sua colocação no mundo, na sociedade; há a necessidade de se manifestar, enquanto criadora ; há a relação homem/mulher, há a discussão de estereótipos femininos .
Esta comunicação pretende investigar a presença feminina na obra de Lygia Bojunga Nunes , desde Os Colegas até Tchau!, obra que entendo como um marco na ficção infanto-juvenil no que diz respeito à imagem feminina, devido às situações ímpares que as narrativas contidas nessa obra apresentam.
Desde a sua primeira obra, Os Colegas, editada em 1972, as personagens femininas de suas narrativas merecem destaque. A personagem Flor ( de Lis), uma cachorrinha de raça, é capaz de se despojar das marcas de riqueza que a cobriam em troca de sua liberdade, de sua verdadeira identidade , pois os adereços impostos por sua dona já a faziam duvidar que fosse realmente uma cachorra . Depois, numa demonstração de coragem, é capaz também de sacrificar-se em nome da amizade que tem pelos companheiros. É ela a autora da idéia que será colocada em prática, para tentar salvá-los. Essa mulher que aparece zoomorfizada na pele de Flor pensa , age , resolve os problemas, é uma mulher valente, destemida sem deixar de ser feminina, embora não se caracterize pela situação materna. Ela é apenas um dos colegas, que lutam pela sobrevivência, independente de ser homem ou mulher. Laura Sandroni, em seu estudo sobre a obra dessa autora, aponta a crítica à "representação caricatural do feminino às classes sociais",[1] encontradas nas palavras da dona de Flor, que quer " uma cachorra caríssima e de raça puríssima, pra todo mundo achar linda e saber quanto custou." (p.13)Percebe-se que Flor aparece como a mulher que é exibida como um troféu. A esta imagem de mulher é que Lygia faz crítica, mostrando a cachorrinha feliz por se livrar de todos os apetrechos que não a deixavam ser quem realmente era. A mulher-objeto não tem mais lugar.
Angélica, a segunda obra de Lygia, de 1975 - traz uma cegonha-mulher como protagonista . Mais uma vez a autora discute questões femininas através da figura de animais . As mulheres dessa história - Angélica, Jandira e Mimi - são diferentes e cada uma representa um aspecto do feminino. Angélica é a mulher segura de si, que não vê problema algum em pagar a conta do restaurante para o namorado , que sai em busca de seus direitos, principalmente o de lutar pelo que acredita. Ouçamos sua conversa com Porto :- Puxa, que vergonha.- O quê?- Você pagou a conta pra mim.- Ué, se você pagasse pra mim eu não ia achar vergonha nenhuma .- Ah, mas é diferente.(...)- Porque é o homem que tem sempre que pagar: é isso.- Ih, Porto, essa idéia é tão antiguinha ! (p.43)Em contraste com as atitudes de Angélica , a Mulher-do-Jota passa a narrativa inteira submissa ao marido, por isso sequer lhe sabemos o nome. Deixa-se esmagar pelo autoritarismo do marido, cujo discurso machista é inconfundível :- Mas eu vou sozinho.: minha mulher fica em casa.- Ah Jota ! disse a mulher toda triste. Quis dizer muito mais, mas as palavras trancaram na garganta e só que conseguiu sair foi uma lágrima pequenina.- Ah o quê? Lugar de mulher é dentro de casa cuidando dos filhos, pronto, acabou-se! Não é, Canarinho?- Mas , Jota ,[2] esse negócio de mulher não poder trabalhar já era !- Pra mim continua sendo, pronto, acabou-se.Somente no final da narrativa consegue impedir que o marido fale por ela e revela seu nome - Jandira - afinal a sua identidade. Há um caminho percorrido, há conquistas que devem ser levadas em conta, há questões sobre a relação entre o casal.A outra mulher , Mimi-das-perucas, é a representante da mulher desmiolada, vaidosa ao extremo, consumista, que vive em salões, em compras e só valoriza a aparência, sem notar que seus desejos exagerados fazem mal ao marido, que é obrigado a abrir mão daquilo com que gosta de trabalhar para poder satisfazer os caprichos da esposa. Esta acaba por se consumir a si própria, já que não pára de consumir tudo, e um dia , " ficou tanto tempo debaixo daquele secador que os cabeleireiros usam, que secou a peruca, a cabeça, Mimi toda secou e morreu."(p.93) . 
Tanto Jandira (a princípio) quanto Mimi podem ser vistas como representantes de um padrão feminino que não assume responsabilidades, que se porta como uma menina, denominado por Linda Schierse Leonard de "puella aeterna ", a menina que não cresce , que precisa de ajuda para assumir sua identidade mulher. Esse padrão se repetirá em várias outras personagens, como veremos depois.
Também em A bolsa amarela, de 1976, surgem questões que dizem respeito ao relacionamento homem/mulher . A "vontade de ter nascido garoto em vez de menina", que aparece na primeira página da narrativa, já dá o tom que encontraremos em seu desenvolver. Mas ela não vem sozinha e duas outras vontades fortes se apresentam juntas : ' a de crescer de uma vez e deixar de ser criança" e a "vontade de escrever" Das três vontades de Raquel, duas passarão a ser temáticas constantes na obra desta escritora : as relações homem/mulher e a mulher/escritura .Raquel não se conforma de não poder fazer coisas que são só para meninos, deseja libertar-se de um modelo comportamental estabelecido, inclusive contra a instrução feminina. Ouçamos a sua voz :Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto, todo mundo faz pouco de mim e diz que é coisa pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a gente bobear e fica burra: todo mundo tá sempre dizendo que vocês têm que meter as caras no estudo,, que vocês é que vão ser chefes de família, que vocês é que vão ter tudo. Até para resolver casamento - então eu não vejo - a gente fica esperando vocês decidirem.[3]O discurso feito por Raquel é condizente com as reivindicações das mulheres na década e setenta, quando o movimento hippie incorporou às idéias de Betty Friedman valores baseados na igualdade entre as pessoas, qualquer que fosse a sua raça, sexo ou cor. No entanto, afinal, "a vontade de ser menino emagreceu tanto que foi embora" , o que nos mostra que a menina assumiu sua identidade feminina, sem reservas , por isso poderá crescer normalmente . Por outro lado, ela encontra na escrita a realização que busca na vida real. O mundo de fantasia passa a ocupar um lugar importante em sua vida, tanto que a vontade de escrever é a única que fica com ela , como podemos observar mais adiante :"- E a tua vontade de escrever?- Ah, essa eu não vou soltar. Mas sabe? Ela agora não pesa mais nada: agora eu escrevo tudo que eu quero, ela não tem tempo de engordar."Se lembramos as dificuldades que a mulher teve para conquistar seu direito de escrever, perceberemos que esta é outra questão feminina constante na obra desta autora. Norma Telles, em seu texto Escritoras, Escritas, Escrituras[4], nos fala sobre a dificuldade da mulher de passar de musa à criadora, uma vez que este papel era destinado ao homem e a mulher, para assumi-lo, teria que "matar o anjo do lar, a doce criatura que segura o espelho de aumento, e teria de enfrentar a sombra, o outro lado do anjo, o monstro da rebeldia ou da desobediência." Portanto, é importante que Raquel tenha assumido sua identidade feminina junto com seu lado criativo, mostrando que é possível ser mulher e criadora. Assim como Raquel consegue se libertar do papel secundário destinado à mulher na escrita, outras personagens também o farão, como veremos adiante, e não mais precisarão , como as mulheres goiabadas, esconder seus escritos entre os cadernos de receitas, domínio exclusivamente feminino.Ainda considerando a relação homem/mulher , outra personagem interessante é o galo Afonso, pois traz em seu discurso, sob a ótica masculina, uma questão importante: as mulheres queriam realmente mudar ?Então eu chamei as minhas quinze galinhas e pedi, por favor, pra elas me ajudarem. Expliquei que vivia muito cansado de ter que mandar e desmandar nelas todas noite e dia. Mas elas falaram: Você é nosso dono. Você é que resolve tudo pra gente. Sabe, Raquel, elas não botavam um ovo, não davam uma ciscadinha, não faziam coisa nenhuma, sem vir perguntar :"Eu posso? Você deixa?" E se eu respondia: " Ora, minha filha, o ovo é seu, a vida é sua, resolve como você achar melhor", elas desatavam a chorar, não queriam mais comer, emagreciam, até morriam. Elas achavam que era melhor ter dono mandando que ter que resolver qualquer coisa. Diziam que pensar dá muito trabalho.[5]Observe-se que esse comportamento era apresentado por muitas mulheres da época, que não tinham sido criadas para a nova condição feminina e não poderiam sequer pensar em assumir responsabilidades e tomar decisões. Novamente o padrão da puella se apresenta : são mulheres que não cresceram e precisam da proteção do homem para que se sintam seguras.
Corda Bamba, de 1979, traz uma série de questões relativas à mulher, a começar pela figura da Mulher Barbuda, ser híbrido que por aparentar a masculinidade através da barba, não perde o instinto feminino e nem o respeito de seu marido que " ach(a)o legal! Nem eu me importo dela ter barba, nem ela se importa d'eu engolir fogo." (p.12) . A barba , segundo Jean Chevalier, é o "símbolo da virilidade, de coragem, de sabedoria" [6], por isso " as rainhas egípcias são representadas com barba, como sinal de poder igual ao rei."Essa igualdade de poder é percebida através do respeito mútuo entre o casal, que tem características distintas , apreciadas como pertinentes à identidade de cada um. Foguinho apresenta a sensibilidade feminina para as coisas simples da natureza, como o soprar do vento, o movimento das marés, o nascimento das estrelas ...enquanto sua mulher ostenta uma barba. Assim , as diferenças os completam, sem disputas entre eles.A avó de Maria traz outro aspecto interessante da mulher : fora casada quatro vezes, mas ainda assim está só. A razão disso : dona Maria Cecília de Melo Mendonça queria mandar nos maridos. Quem nos narra sua história é a velha contadora de histórias, comprada de presente para Maria:Só sei que um dia, Dona Maria Cecília Mendonça de Melo, que não gostava de homem de barba, que não gostava do nome Pedro, que não gostava de homem com mania de trabalhar, encontrou um homem de barba chamado Pedro e trabalhando pra chuchu. Ele começou a gostar dela e pediu ela em casamento. Ela ficou tão espantada de ser pedida em vez de pedir, que topou. E quando foi querer mandar nele, ele falou: nem eu mando em você nem você em mim. mas ela cismou que era ela que mandava, e que ele tinha que raspar a barba, e que ele tinha que trocar de nome, e que mais isso e mais aquilo, e aí um dia ele falou :tchau! Só volto quando você parar com essa mania de querer mandar em mim.[7]Observa-se que a relação entre o casal é prejudicada pela necessidade de um mandar e, neste caso, a mulher. Dessa forma, Lygia Bojunga traz de novo o lado masculino da relação entre o casal. A mulher não é só a vítima, ela pode ser também a razão de discordância, pode ela própria dificultar uma relação de igualdade. Ao retomar a barba, a autora parece querer nos dizer que ser masculino não significa necessariamente o poder, pois Pedro, aquele que a tem, é quem propõe a igualdade de direitos, negada por Maria Cecília. Esta representa o padrão "amazona de couraça" apontado também por Linda Leonard, mulheres que , à primeira vista, são confiantes, forte, poderosas, mas que se revelam solitárias e imensamente assustadas, por trás da couraça.
De 1980 é O sofá estampado, em que a autora retoma as personagens zoomorfizadas . As fêmeas, também nesta narrativa , representam vários aspectos do feminino. Temos, por exemplo, a dona-de-casa retomando a imagem da mulher fútil, que só se preocupa com as aparências e , por isso, deve combinar tudo. Ela possui uma gata angorá que a complementa , pois passa o dia todo frente à televisão e vê na propaganda os sinais de status necessários para viver : tem que comprar tudo. Essas mulheres desmioladas se opõem à figura da avó de Vítor, uma mulher inquieta, que não nega sua condição feminina , mas não deixa que sua curiosidade e a vontade de ver o mundo morram em seu peito, já que "Desde pequena ela tinha vontade de viajar, queria por força conhecer o mundo. E queria conhecer tudo de tatu ; como eles eram antigamente, o que eles comiam, onde é que tinha vivido o primeiro tatu. Foi ser bandeirante, excursionista, bolsista.(...) Estudou arqueologia, viajava cada vez mais longe.. "[8]Depois que o marido, companheiro de viagens, morreu, ela teve que parar, pois deveria criar sozinha os filhos. Portanto, não foge a seu papel de mãe e somente quando o último filho se formou, ela chamou os cinco e anunciou: " Bom, meus queridos, vocês estão com a cabeça cheia de idéias, estão com saúde, daqui pra frente cada um se vira à vontade, tá? - Tirou a poeira da mala e voltou a viajar. " (p.50)Mais uma vez a autora parece nos mostrar que, para assumir sua identidade, a mulher não precisa negar sua condição feminina , desde que haja vontade de conciliar , desde que o preconceito não fale mais alto. Esta é uma mulher saudável, que não desenvolveu nenhum dos padrões patológicos apontados por Linda Leonard.Outra personagem interessante nesta obra é Pôzinha., uma hipopótama que se apaixona por Ipo, para quem começa a trabalhar e ganha muito dinheiro. Com o tempo, Ipo a afasta de si, levando em conta apenas seu trabalho. Aos poucos Pôzinha se ergue, estuda administração de empresas à noite, funda uma agência de publicidade e se torna rica. Só que neste processo, para compensar a carência afetiva, transforma-se em uma "workholic", uma viciada no trabalho, como tantas mulheres já o são : suas mágoas são canalizadas para força de trabalho , que , afinal , não preenche o vazio. Essa também é uma personagem que se encaixa no padrão da amazona de couraça, pois embora se mostre irredutível quanto à necessidade de lucro, de se auto-afirmar, revela-se magoada a ponto de procurar o inventor da máquina de transformar a mágoa em algo positivo.
Este longo percurso até chegar a Tchau! , obra que nomeia esta comunicação, nos apresentou diversos enfoques do feminino, mas em nenhum deles havia o rompimento com a imagem de mãe apontada pela burguesia , em que era "considerada base moral da sociedade, (a mulher de elite), a esposa e mãe da família burguesa deveria adotar regras castas no encontro sexual com o marido, vigiar a castidade das filhas, constituir uma descendência saudável e cuidar do comportamento da prole."[9] Nesse percurso, a autora procura mostrar as possibilidades de convivência entre os vários aspectos femininos.Nesta obra, composta por quatro contos, também encontramos várias faces do feminino, inclusive aquelas já percebidas em outras narrativas, como a mulher escritora, que surge em A troca e a tarefa, em que a escritura se torna fundamental na vida da mulher , a ponto de as duas terem o mesmo fim: acabam juntas.
Em O bife e a pipoca a mulher dona-de-casa é retomada, aquela que se mostra preocupada apenas com o tapete manchado, onde caiu o bife de Tuca que, por vergonha, não consegue pedir mais comida. Quando a empregada pergunta se seria necessário servir de novo o garoto, a mãe responde : " Será que é preciso? - Examinou o tapete. - Passa a escova pra ver se não ficou nenhuma manchinha." (p.37) Ela não tem a sensibilidade de perceber o embaraço do menino, sua única preocupação é a limpeza do tapete. Por outro lado, a mãe de Tuca nos traz um aspecto do feminino que não surgira na obra bojunguiana até então : a mulher degradada. É Tuca quem nos conta :Quando a minha irmã tranca a minha mãe daquele jeito é porque minha mãe já tá tão bêbada que faz qualquer besteira pra continuar bebendo mais. - Começou a sacudir o Rodrigo. - Você olhou bem pra cara dela, olhou? Pena que ela não tava chorando e gritando pra você ver. Ela chora e grita ( feito nenem com fome) pedindo cachaça por favor. (p.41/42)Essa mulher da favela, tão distante daquela preocupada com o tapete, traz para a literatura infanto-juvenil uma imagem que faz parte da realidade de várias crianças, não somente das pobres, mas ela não é comum na literatura. Mais uma vez tem-se a impressão de que a autora não quer deixar de lado nenhum aspecto do feminino e é por isso que traz a figura da Mãe, mulher sem outra identidade, nomeada apenas assim, com letra maiúscula e tudo.
A Mãe, de Tchau! , mais que uma personagem da literatura , personifica a condição feminina de mulher, que se apaixona e é capaz de deixar a família, os filhos, para viver o seu amor. Irônico então é o nome atribuído à personagem .Na condição de mãe de duas crianças, seria esperado dela que desempenhasse o papel de Hera, "protetora das mulheres casadas legitimamente"[10], que tentasse manter sua família unida, que lutasse contra possíveis paixões do marido. No entanto, é ela quem conhece outro homem, é ela que se apaixona por um grego - não por acaso - e deixa o lar, a despeito dos pedidos do marido e da filha. A luta entre Hera e Afrodite parece se concretizar nesta personagem, que se vê arrastada pelo amor erótico - talvez o próprio Eros, em forma de grego - e abandona o lar. É a Mãe que nos conta sobre a paixão que sente por esse homem :Se ele me diz, vem te encontrar comigo, mesmo não querendo eu vou; se ele fala que quer me abraçar, mesmo achando que eu não devo eu deixo; tudo que eu faço de dia, cuidar de vocês, da casa, de tudo, eu faço feito dormindo: sempre sonhando com ele; e de noite eu fico acordada, só pensando, pensando nele. (...) só de chegar perto dele eu fico toda suando, e cada vez que eu fico longe eu só quero é ir pra perto, Rebeca! Rebeca! Eu tô sem controle de mim mesma.[11]Ao nomear essa personagem de Mãe e fazê-la apaixonar-se tão perdidamente por esse homem, Lygia Bojunga parece querer afirmar a existência da mulher por trás ( ou à frente) da mãe. Ela é Mãe, mas é também Mulher . A mulher, talhada pelos valores burgueses, em sua condição de quase santa e assexuada, não é a que encontramos. Então, percebemos que estamos diante de outra faceta feminina, que ainda não surgira na obra desta autora e muito menos em de outros tantos autores.Interessante também é notar que ao conversar com o pai , Rebeca se refere à mãe, com letra minúscula, ou seja, não é mais a identidade feminina que encontramos, como no início da narrativa, mas o papel desempenhado dentro da família. Interessante também é constatar que esse pai se revela fraco, sente-se impotente diante da possibilidade de criar os filhos sozinho, e transfere para Rebeca a responsabilidade de reter a mãe em casa. Chantagem pura.Essa faceta feminina existe, por isso é mostrada por Lygia Bojunga, independente do leitor a que se destine a obra, no entanto, não podemos deixar de perceber que a concepção desta personagem parece romper um trato feito , há muito tempo, entre escritores de obras para crianças, de construir uma imagem feminina idealizada, em que a figura materna se sobreponha a qualquer outro aspecto desse ser.Considerações finaisApós a leitura da obra de Lygia Bojunga Nunes, percebe-se que a imagem feminina se revela sob vários aspectos , como em um poliedro: há várias faces que compõem o todo. Essa visão cubista se constrói porque a autora não se limita a apresentar a mulher sob uma ótica feminista ou machista. Na verdade, parece querer deixar ao leitor a possibilidade de construir a sua imagem., reafirmando a impossibilidade de determinar-lhe um único perfil.Suas faces se multiplicam , se perpetuam nas diversas personagens não citadas, aqui, por absoluta falta de espaço.
 É o caso de obras como O meu amigo pintor, em que cada mulher deveria ter uma face, e naõ ser "assim sempre igual" ou em Seis vezes Lucas, narrativa habitada por várias mulheres.Apesar desta diversidade, a obra Tchau! se destaca do conjunto pela singularidade das imagens que apresenta, principalmente no conto homônimo e em O Bife e a pipoca. Entendo que a autora, ao romper barreiras e trazer para a literatura infantil as imagens dessas mulheres, demonstra a necessidade de que a mulher seja vista , também na literatura, como um todo, não a partir de estereótipos pré-estabelecidos pela sociedade burguesa.Assim, a obra de Lygia Bojunga Nunes revela-se imensamente rica para a reflexão sobre o papel da mulher no mundo, na sociedade. Poucas são as autoras que conseguiram mostrar a mulher de modo tão completo; poucas são as autoras que permitem, assim como ela, que cada leitor escolha seu caminho neste fascinante bosque que nos apresenta.



Notas:
[1] SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga. Rio de Janeiro : Agir, 1987. P.120.
[2] NUNES, Lygia Bojunga. Angélica. 18ed.Rio de Janeiro : Agir, 1995.p.89/90
[3] NUNES, Lygia Bojunga . A Bolsa Amarela. São Paulo : Agir, 1986.p.16.
[4] História das Mulheres no Brasil, São Paulo : Contexto, 2000. página 408.
[5] Idem, p.35.
[6] CHEVALIER,Jean& GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. São Paulo : José Olympio, 1988p.121.
[7] NUNES, Lygia Bojunga.Corda Bamba, 15ed.Rio de Janeiro: Agir,1993. p.102
[8] NUNES, Lygia Bojunga . O sofá estampado6ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1985.p.49
[9] História das mulheres no Brasil, página 230.
[10] KURY, Mario da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro :Jorge Zahar Editor. , p.180.
[11] NUNES, Lygia Bojunga. Tchau! 4ed.Rio de Janeiro: Agir, 1989. P.14.

Referências Bibliográficas

1. CHEVALIER,Jean& GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. RJ : José Olympio, 1988.
2. História das mulheres no Brasil . org. de Mary del Priori. São Paulo : Contexto, 2000.
3. LEONARD,Linda Schierse.A mulher ferida. São Paulo : Saraiva, 1990
4. NUNES, Lygia Bojunga . A Bolsa Amarela. Rio de Janeiro : Agir, 1986.
5. _____ Angélica. 18ed.Rio de Janeiro : Agir, 1995.
6. ___ Corda Bamba, 15ed.Rio de Janeiro: Agir,1993.
7. ___ Os colegas. 11ed.Rio de Janeiro : José Olympio, 1983.
8. _____ Tchau! 4ed.Rio de Janeiro: Agir, 1989.
9. SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga. Rio de Janeiro : Agir, 1987.
10. KURY, Mario da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro :Jorge Zahar Editor. ,
**Observação: A imagem da postagem é uma pintura Rococó, entitulada "A leitora" do artista do pintor francês Jean Honoré Fragonard.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Sobre adaptações de clássicos para jovens

Texto publicado na revista TRAMA, da UNIOESTE, em 2015

DE MONTEIRO LOBATO A PEDRO BANDEIRA, AS ADAPTAÇÕES DOS CLÁSSICOS NO BRASIL
 Cátia Toledo Mendonça*

RESUMO: Este artigo discute as adaptações dos clássicos, feitas para jovens no Brasil, enfatizando dois autores em particular: Monteiro Lobato e Pedro Bandeira, procurando evidenciar as características particulares de cada proposta e a validade da leitura dessas adaptações para o processo de formação do leitor. O texto se constrói a partir dos pressupostos da Estética da Recepção, envolvendo principalmente os conceitos de horizonte de expectativa e de repertório, como suporte para as discussões sobre a validade das adaptações.São discutidas as obras Dom Quixote das crianças, A marca de uma lágrima e Agora estou sozinha. A primeira uma adaptação da obra de Cervantes, feita por Monteiro Lobato, a segunda, uma releitura de Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, e a terceira, uma releitura de Hamlet, as duas últimas feitas por Pedro Bandeira. PALAVRAS-CHAVE: Adaptações dos clássicos, Monteiro Lobato, Pedro Bandeira.

 ABSTRACT: This paper discusses adaptations of the classics,made for young people in Brazil, emphasizing two authors in particular: Monteiro Lobato and Pedro Bandeira, intending to highlight the particular characteristics of each proposal and the validity of the reading of these adaptations to the reader´s formation process.The text builds on the assumptions of Aesthetics of Reception, mainly involving the concepts of expectation´s horizon and repertoire, as support for discussions on the validity of the adaptations. Don Quixote of children will be discussed, The mark of a tear and Now I am alone. The first is an adaptation of the work of Cervantes,by Monteiro Lobato, the second, a rereading of Cyrano deBergerac, Edmond Rostand, and the third, a rereading of Hamlet, the latter two made by Pedro Bandeira. KEYWORDS: Adaptations of classics; Monteiro Lobato;Pedro Bandeira

Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo dos de lança em cabido, adarga antiga e galgo corredor. (Cervantes) ¯ Ché! ¯ exclamou Emília. ¯ Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua, até logo! Vou brincar de esconder com o Quindim. “Lança em cabido, adarga antiga, galgo corredor”… Não entendo essas viscondadas, não…
 ¯ Lança em cabido quer dizer lança pendurada em cabido; galgo corredor é cachorro magro que corre e adarga antiga é... é... (Monteiro Lobato)

 UMA QUESTÃO DE PONTO DE VISTA
 A polêmica em torno da validade da leitura dos clássicos ou de suas adaptações, no Brasil, continua a suscitar discussões acirradas. De um lado estão aqueles que defendem a leitura do original e do outro, os que defendem a leitura da adaptação, como ponte para o original. Recentemente, a discussão foi retomada e ganhou espaço nas redes sociais, a partir da proposta de Patrícia Secco de adaptar a obra de Machado de Assis para torná-la mais acessível aos jovens, mas principalmente aos adultos, que tenham dificuldade de compreensão do texto machadiano. O argumento da escritora, que escreve para o público juvenil, é que dessa maneira ela estaria dando oportunidade às pessoas com pouca escolaridade, ou, como ela mesmo afirma “os mais simples”, de ler Machado de Assis. Em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, publicada em 9 de maio de 2014, reagindo ao abaixo assinado (com mais de 1000 assinaturas) contra a publicação que pretende fazer de O alienista, de Machado de Assis e de A pata da Gazela , de José de Alencar , a autora afirma: Estou horrorizada. É muito triste pensar que algumas pessoas acham que Machado de Assis, o mestre da literatura brasileira, não pode ser lido pelo sr. José, eletricista do bairro do Espinheiro, que, apesar de gostar de ler, não cursou mais que o primário, ou pelo Cristiano, faxineiro de uma farmácia de Boa Viagem, que não sabe nem mesmo o significado da palavra boticário. (http://www.estadao.com.br/ noticias/arte-e-lazer,patricia-engel-secco-defende-projeto-de-facilitarobra-de-machado-de-assis,1164221,0.htm . Acesso em 14 de maio de 2014) Nota-se, pela declaração da escritora, a suposição de que ler o texto que ELA publicará, será ler Machado de Assis. Na verdade, o que Patrícia Secco está fazendo é uma prática antiga no Brasil, como veremos adiante, mas ler o texto produzido por ela jamais será ler Machado de Assis ou Alencar, porque ao facilitar a obra para “os mais simples” ela retirará tudo que fez de Machado e de Alencar grandes clássicos da literatura brasileira. As dificuldades de leitura dos clássicos não se resumem ao vocabulário de uma outra época; deve-se levar em conta as inúmeras referências a outras obras, uma estrutura narrativa diferente daquela encontrada na literatura de entretenimento, marcas de estilo pessoal, que fazem dos clássicos obras de arte. A proposta da escritora é manter apenas o enredo e isso não faz de obra alguma um clássico. Todos os temas já foram contados, recontados, mas a forma como são contados é que faz de uma obra algo especial. José continuará sem ler Machado de Assis: terá lido Patrícia Secco, que não é um mestre da literatura brasileira.
O que Secco traz de novidade é o público a que se destina sua publicação, uma vez que as adaptações normalmente se destinam a leitores em formação e os adultos deveriam ser leitores constituídos . Ou seja, propor a leitura das adaptações dos clássicos brasileiros para adultos é reconhecer que há grandes problemas no processo de formação do leitor no Brasil. É admitir que a Escola está falhando na educação literária , proposta nos PCNs.
 Deixando de lado a questão da adaptação de obras nacionais para adultos, a preocupação se volta para os leitores em formação , que têm (ou deveriam ter) na Escola o lugar para que se formem. Para esse público,de crianças e jovens, são válidas as adaptações? Elas os levarão à leitura do texto original, mesmo que traduzido? É o que se pretende começar a discutir.

OS CLÁSSICOS
 Tradicionalmente associados à alta cultura, os clássicos são aqueles que servem de modelo, que são paradigmas para escritores e críticos, mas também “são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.” (CALVINO, 2007, p.10),por isso, os clássicos formam o cânone, o conjunto de obras que se imortalizaram na História da Literatura. O contato com os clássicos contribui para a formação do indivíduo. É a partir dessa certeza que se discute a leitura dessas obras por crianças e jovens e a pertinência das adaptações que são feitas, com a intenção de facilitar a leitura.
A partir dessa ideia, pretende-se apresentar algumas das releituras dos clássicos feitas por dois escritores brasileiros- Monteiro Lobato e Pedro Bandeira-, que serão analisadas em sua relação com a obra original, a partir de que se discute a validade da leitura dessas obras em sala de aula, como ponte para leitura dos clássicos . No caminho dos quase cem anos que separam os dois autores, serão feitas rápidas reflexões sobre outras adaptações que existem no Brasil, como aquelas feitas pelas editoras Scipione e Ática e as adaptações em forma de quadrinhos. O texto se constrói a partir dos pressupostos da Estética da Recepção,  envolvendo principalmente os conceitos de horizonte de expectativa e de repertório, como suporte para as discussões sobre a validade das adaptações. O corpus escolhido é formado pelas obras Dom Quixote das crianças,A marca de uma lágrima e Agora estou sozinha. A primeira, uma adaptação da obra de Cervantes, feita por Monteiro Lobato; a segunda, uma releitura de Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, e a terceira, uma releitura de Hamlet, sendo que as duas últimas foram feitas por Pedro Bandeira.

 AS ADAPTAÇÕES NO BRASIL DE MONTEIRO LOBATO
 Por volta de 1880, Carl Jensen, jornalista e professor, um alemão que se mudou para o Brasil ainda jovem, traduziu obras como Robson Crusoé, As Aventuras de Gulliver, As aventuras do celebérrimo barão de Münchhausen e Dom Quixote, destinando-as aos jovens leitores. Naquela época, a facilitação da vida do leitor não era o foco principal dos autores, como indicam os textos escritos por Olavo Bilac, Coelho Neto ou Júlia Lopes de Almeida, alguns dos nomes pioneiros na produção de livros infantis no Brasil. Isso provavelmente se deve ao fato de que o conceito de leitor, assim como o de criança, no início do século XX, eram diferentes dos de hoje.
Cerca de cinqüenta anos depois das traduções de Jensen, em 1936, Monteiro Lobato lançou uma adaptação da obra de Cervantes: Dom Quixote das crianças. O projeto era antigo, pois em carta a seu amigo Rangel, em 1925, Lobato já falava em uma possível tradução da obra. Para Lobato, a tradução não devia ser ao pé da letra, antes, o tradutor deveria ter a “liberdade de melhorar o original” (ALMEIDA PRADO, in LAJOLO; CECCANTINI, 2008, p. 328, a), por isso, Dom Quixote das crianças se constrói em uma linguagem abrasileirada, facilitada para a compreensão infantil. Na história, o livro antigo é encontrado por Emília, que solicita a leitura. Mas, quando Dona Benta começa a ler, a reação da boneca ao estilo da tradução feita em Portugal, há muitos anos, pelos Viscondes de Castilho e de Azevedo, leva a senhora a optar pela adaptação:
 - Meus filhos- disse Dona Benta- esta obra está escrita em alto estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se tornou clássica. Mas como vocês não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a história com palavras minhas. (LOBATO, 1968, p.12, a)
Desse modo, Dona Benta passa a ser a narradora das histórias de Dom Quixote, que causam reações nos ouvintes. Recepção e obra se alternam com os acontecimentos vividos no Sítio e, durante a leitura, Dona Benta, procurando facilitar a compreensão das crianças, associa ao texto  informações sobre o momento em que a obra foi escrita, referências a outros escritores e responde às perguntas das crianças sobre o que elas não entendem, tudo isso em linguagem bem acessível. A obra de Cervantes está contida no texto lobateano, com o qual se mistura. Os episódios são selecionados, dando-se preferência aos aspectos cômicos da obra, que além de estar em linguagem simples, é resumida e, portanto, mais adequada ao leitor infantil que aqueles dois grossos volumes citados por Emília. Trata-se, pois, de uma obra que pretende seduzir o leitor e que pode ser vista como parte do projeto lobateano de formação de leitores.
Enquanto ouvem as histórias de Dona Benta, quando uma das crianças não entende alguma palavra, dirige-se a ela, que explica. Como se vê no trecho a seguir:
- Que é viseira?- perguntou Narizinho. - Viseira é a parte da armadura que recobre o rosto do cavaleiro. Uma parte móvel, que se ergue quando o enlatado deseja mostrar a cara, falar ou comer. Ergueu a viseira e disse: (LOBATO, p.20, b)
Nota-se que Dona Benta para por instantes a história para explicar à neta o significado da palavra, mas logo depois a continua, emendando o enredo de Cervantes com as curiosidades infantis. Nesse sentido é que a obra se torna antropofágica, como afirma Almeida Prado, no texto contido no livro Monteiro lobato livro a livro, organizado por Marisa Lajolo e João Ceccantini, pois os textos se misturaram: não é um Dom Quixote de Cervantes nem de Lobato, tornar-se um outro, o das crianças, que participam da construção, com perguntas, comentários, reflexões.
Ao permitir que as crianças façam perguntas e tenham as respostas, Lobato não só concretiza seu ideal de Escola, em que as crianças não são vistas como meros depósitos de conhecimento, mas como seres capazes de construí-los , como também valoriza a criação de um repertório que permita ao leitor a compreensão do texto. Narizinho, Pedrinho e Emília são os leitores que necessitam de um mediador para que compreendam o texto.
O repertório de um leitor é composto por suas experiências anteriores, incluindo seus conhecimentos variados, como o literário e o de mundo. É ele que permite às pessoas leituras diferentes de um mesmo texto, pois cada um, na hora de ler, irá buscar em seu repertório as informações de que dispõe e que o ajudarão a dar sentido ao que leu. Como cada sujeito tem experiências diferentes, os espaços em branco do texto darão a possibilidade de que cada um o complete de uma forma. Ao introduzir na narrativa as informações fornecidas aos netos de Dona Benta, Lobato as estende também aos leitores mirins de seu tempo, 38 Revista Trama - Volume 11 - Número 21 - 1º Semestre de 2015 que, assim como os personagens do Sítio, não teriam condições de entender a obra de Cervantes sem a mediação de um adulto. Não se pode esquecer que Dom Quixote, já naquela época, fora escrito há séculos e, como sabemos, a leitura de uma obra em um tempo muito distante de sua produção pode levar o leitor a fazer uma leitura muito diferente daquela feita à época em que o texto foi escrito. Além disso, o leitor modelo do texto de Cervantes não era, certamente, a criança, para a qual Lobato e Jansen endereçavam suas obras. Sem as explicações fornecidas por Dona Benta, o texto seria apenas parcialmente compreendido pelos leitores, tanto os do Sítio quanto os leitores de Lobato. Ainda hoje essas informações contribuem não só para a compreensão das crianças , mas também de alguns adultos , cujo repertório não contemple conhecimentos sobre a cultura espanhola e ou sobre a obra de Cervantes. Como era comum no início do século XX, Lobato também escrevia pensando na Escola, tanto que Narizinho Arrebitado, o primeiro livro voltado para o público infantil, tem como subtítulo “Segundo livro de Leitura”. Lobato era adepto do movimento da Escola Nova, que no início do século XX teve destaque no Brasil, incentivado principalmente por Anísio Teixeira e Lourenço Filho. Por isso, tinha uma concepção de escola diferente da que prevalecia no Brasil daquela época,pois valorizava o prazer e o desenvolvimento da imaginação. Foi por causa dessa concepção que ele procurou dar a seus livros um formato mais acessível ao leitor de seu tempo, mesmo contrariando as tendências vigentes, que tinham apenas a intenção de informar, de desenvolver o nacionalismo nas crianças e privilegiavam a variante culta da língua nacional, condenando a presença da oralidade nos textos escritos para crianças. Ao assumir essa atitude, Lobato interferiu no horizonte de expectativas de sua época. O horizonte de expectativas é responsável pela primeira reação do leitor à obra, pois se encontra na consciência individual como um saber construído socialmente e de acordo com o código de normas estéticas e ideológicas de uma época. Naquela época, as obras escritas para crianças eram muito diferentes das que ele escreveu, por isso seus livros causaram reações diversas, que foram da aceitação e adoção em escolas de alguns estados até a proposta da queima de livros, como ocorreu em São Paulo, com a edição de Peter Pan, outra adaptação feita pelo escritor. Se pensarmos nas obras de Júlia Lopes de Almeida e de Olavo Bilac, por exemplo, perceberemos o tom do adulto, que se dispõe a transmitir valores aos leitores, como caridade, patriotismo, obediência, tudo muito diferente das crianças encontradas na obra lobateana, principalmente Emília, cuja impertinência incomodava aos educadores da época. A proposta de Lobato, a despeito das reações negativas, solidificou-se e transformou-se em um novo paradigma. Segundo as teses desenvolvidas por Jaus em sua conferência de 1969, que são consideradas o marco inicial da Estética da Recepção, as grandes obras serão aquelas que conseguirem provocar o leitor de todas as épocas, permitindo novas leituras em cada momento histórico. Foi exatamente o que fez Lobato, ao aproximar o texto clássico do público infantil, pois sua obra, ainda hoje, pode ser lida, compreendida e admirada pela criança brasileira, que também se beneficiará das informações dadas por Dona Benta. Além disso, as adaptações de obras clássicas para crianças, no Brasil, tornaram-se uma opção das editoras, que investem, cada vez mais, em releituras e adaptações livres dos clássicos, tanto para crianças quanto para jovens. Nesse contexto dialógico entre o texto clássico e o juvenil é que se destaca o nome de Pedro Bandeira, principalmente pela aceitação que suas obras têm junto aos jovens, e que será o outro autor cuja obra serve de reflexão sobre a validade ou não da leitura das adaptações em sala de aula.

O FINAL DO SÉCULO XX E OS CLÁSSICOS

A leitura dos clássicos, a cada dia, perde espaço na sociedade pós-moderna. A Escola já não é mais o lugar onde jovens terão contato com o clássico ,embora se reconheça a importância de sua leitura. Há uma preocupaçãoem criar o gosto pela leitura, que arrasta professores e alunos em direção a uma armadilha editorial de, cotidianamente, apresentar textos mais fáceis, que pouco exigem do leitor, para que se crie o tal “hábito de leitura”. Além de entender que hábitos são atitudes mecânicas e que ler não pode ser visto assim, acredito que essa ditadura da facilidade está interferindo muito no processo de formação de nossos alunos, cujo repertório de leitura se limita, quase que totalmente, a coleções pertinentes à literatura de entretenimento. Nada contra a literatura de entretenimento, desde que ela seja parte do processo e não a finalidade dele, como vem acontecendo em nossas escolas. Quando, em 1971, a Lei de Diretrizes e Bases 5692 decretou a leitura obrigatória de autores brasileiros nas escolas, deu-se o que costumam chamar de o “boom” da literatura infantil no Brasil. Muitos autores viram na Escola um meio de ganhar dinheiro com a literatura e, várias foram as tendências que se pode identificar no período: umas voltadas para o estético, em que os autores mantém o compromisso com a “arte da palavra”, embora seus textos tivessem a criança ou o jovem com leitores específicos, como o caso de Lygia Bojunga Nunes, Bartolomeu Campos Queirós, Ana Maria Machado, Marina Colasanti; outras marcadas pelo utilitário, como várias obras de Ruth Rocha; umas mais pedagógicas que outras; em quase todas, a proposta da facilitação da leitura.
Atendendo ao novo mercado voltado para a Escola e suas  necessidades, as editoras criaram séries que pudessem ser “adotadas” na Escola. Em 1973 a Ática criou a Série Vaga-lume, composta, a princípio, por textos já consagrados pela crítica, como A ilha perdida, de Maria José Dupré, O escaravelho do diabo, de Lúcia Machado de Almeida, Cem noites tapuias, de Ofélia e Narbal Fontes, e outros que fizeram parte da lista na primeira década de existência da série;obras resgatadas e relançadas para leitores juvenis.
Somente na década de 80 Marcos Rey seria convidado para criar textos especificamente para a coleção, como foi o caso de O mistério do cinco estrelas, divisor de águas da série, em que elementos como o mistério e o romance se misturam, retomando o modelo de romance policial juvenil, cujo detetive é um adolescente, consagrado por João Carlos Marinho, em O gênio do crime, e que se tornaria a grande marca da série Vaga-lume.
O mistério e o suspense são dois elementos constantes na literatura juvenil, encontrados em quase todas as obras destinadas a esse público. Na tendência de livros para jovens, a Scipione, em 1984, criou a série Reencontro, que, como afirma a própria editora, é “formada pelos maiores clássicos da literatura universal recontados por escritores de talento, numa linguagem acessível e agradável” (http://www.scipione.com.br/ conhecendoascipione.asp?bt=1Acesso em 15 de maio de 2014) .
 Hoje, há mais de setenta títulos, adaptações feitas por autores renomados, como Ana Maria Machado, Carlos Heitor Cony e outros tantos, que ainda compõem a série. As obras originais são lidas e adaptadas, sempre em prosa, para uma linguagem acessível aos jovens brasileiros dos séculos XX e XXI. Dessa maneira, Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare, ganhou versão em prosa, como aconteceu também com Otelo, tragédia do mesmo autor inglês. São mantidos, além do título, personagens e enredo, trazendo ao jovem leitor a impressão de que ele está, realmente, lendo a obra dos grandes escritores, quando na verdade o texto lido não é mais que uma paráfrase do original, em que as idéias principais do texto são mantidas, embora a linguagem e o gênero sejam modificados e outras palavras sejam utilizadas para manter o enredo.
Um cotejo cuidadoso, entre o original e o novo texto revela que a facilitação tão explícita na linguagem deixa também de lado elementos culturais, marcas da época em que o texto foi escrito, e que o tornaram “clássico”, já que os temas se repetem na literatura das várias épocas, sem que seja garantia de permanência. Isso acontece porque a proposta inicial da série não é traduzir o original, mas parafraseá-lo, para torná-lo acessível ao leitor jovem. Dom Quixote, o Cavaleiro da triste figura, foi adaptado por José Angeli, e começa da seguinte forma:

 Numa pequena aldeia da Mancha, província espanhola, vivia um fidalgo. Homem de costumes rigorosos e decadente fortuna. Dom  Quesada ou Quixano- nunca ninguém soube ao certo- vivia da exploração de suas propriedades, que mal lhe rendiam para manter uma simples aparência de abastança. Homem forte, altivo, nervoso, cultivava a caça como esporte e forma de abastecer melhor sua mesa.(ANGELI, 1990, p.5)

Como se viu na obra de Lobato, Dom Quixote, texto de Cervantes, inicia de forma bem diferente, a começar pelo título do primeiro capítulo, no qual se lê “ Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha” , marca da literatura do início do século XVII (Dom Quixote foi publicado em 1605) em oposição a “Aqui apresentamos Dom Quixote de La Mancha” encontrado na adaptação. A referência à lança em cabido e ao galgo corredor que tanto incomodou à Emília , simplesmente desaparece, deixando de lado um texto que já se tornou sinônimo de Dom Quixote. A tradução dos portugueses Viscondes de Castilho e Azevedo não faz referência ao fato de o fidalgo ter que caçar para comer. Ao contrário, há apenas uma citação “amigo da caça”. O que se encontra na adaptação faz parte da leitura do adaptador, que altera o texto de acordo com o que acha que deva causar maior efeito no leitor. Essa coleção foi estendida também para o público infantil e hoje já existe a Reencontro Infantil, em que a ilustração acompanha o texto adaptado para o público a que se destina, ou seja, crianças a partir dos nove anos, como nos indica a contracapa.
 Outras editoras lançaram adaptações dos clássicos para jovens,depois da Scipione, como fez a Ática, ao criar a coleção Descobrindo os clássicos. Nela os autores, também consagrados pela crítica brasileira, não fazem apenas uma releitura da obra clássica; criam uma outra história e dentro dela encaixam o texto clássico , principalmente os de língua portuguesa. Álvaro Cardoso Gomes, por exemplo, criou a narrativa Por mares há muitos navegados, que já traz no título o diálogo com a obra de Camões e, em seu interior, trechos de Os lusíadas. Os dois textos são apresentados separadamente, alternando-se, o que traz ao leitor a possibilidade de ter contato com o original e com a paráfrase, que explica ao leitor do século XXI aquilo que seu repertório não lhe permite entender. Por exemplo:

 Ele continuou a explicar: - ... depois, vem a narração dos feitos de Vasco da Gama, ou seja, a viagem até a Índia, mesclada a um grande resumo da história de Portugal, que acontece entre o terceiro e quarto Cantos. E, no final, como não poderia deixar de ser, vem o Epílogo, que, ao mesmo tempo que exalta a grandeza de Portugal, contém um crítico melancólico, quando o Camões se põe a lamentar a avidez dos portugueses, que desprezam a arte pela cobiça. E o Luís Alberto declamou: Não mais, Musa, não mais que a lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e da rudeza De uma austera, apagada e vil tristeza. O favor com que mais se acende o engenho/não no dá a pátria: Camões quer dizer que a pátria não está interessada no engenho (o talento poético), porque as pessoas na época tinham se voltado apenas para a cobiça. (GOMES, 2002, p.26-27)

A primeira parte da citação, que vai desde “ele continuou a explicar” até “Luís Alberto declamou” faz parte da história de moldura, em que Luiz Alberto é o professor de Português que prepara Dedé para a prova. Por isso ele faz um resumo da epopeia, depois de ter explicado o que é uma epopeia. Na segunda parte , em itálico, temos o texto camoniano, que começou a ser explicado pelo professor e irá ganhar mais ênfase na explicação que aparece em fonte menor, e traz o significado das palavras desconhecidas pelo leitor jovem. Desta forma o novo texto, Por mares há muito navegados, se constrói em vários níveis, que se complementam para propiciar ao leitor o contato com o clássico português e a compreensão dele.
O mesmo acontece com O mistério da casa verde, adaptação do conto machadiano O Alienista, que Patrícia Secco quer reescrever, com O Cortiço, que se transforma em Dez dias de cortiço e muitos outros clássicos brasileiros. Assim como na obra de Lobato, nessa coleção há sempre um narrador que conta a história para alguém e faz comentários sobre o texto original, auxiliando na compreensão do texto e do desenvolvimento do enredo. No entanto, o texto original não é simplificado, mas transposto. Nota-se a preocupação com a formação do leitor que, aos poucos, terá contato com o texto clássico, sem que a leitura lhe seja penosa . Trabalha-se o repertório, sem que o leitor se dê conta, pois são fornecidas informações para que ele compreenda a leitura, como contextualização, significação das palavras, informações sobre o gênero e sobre o autor. Ele não fica com a sensação de que leu a obra clássica na íntegra, pois o novo texto traz os recortes bem claros, inclusive com mudança de fonte para o itálico, quando é apresentado o texto clássico. Essa leitura, se trabalhada por um professor que funcione como mediador de leitura, nos anos finais do Ensino Fundamental, pode ser uma porta de entrada para a leitura dos clássicos na íntegra, já que permite um primeiro contato com o texto integral, que será entendido pelo leitor.
Uma pesquisa rápida feita na Internet, no entanto, mostrou que a leitura dessas obras tem sido feita por alunos do Ensino Médio, ou seja, a coleção passou a ser lida no lugar dos clássicos. Nota-se que, mais uma vez, a ditadura da facilidade vem interferir no processo de formação de nossos leitores, que parecem estar destinados a ler só adaptações. Ana Maria Machado, em sua obra Como e por que ler os clássicos desde cedo defende a leitura das adaptações como uma porta de entrada para a leitura do texto integral. Enfatiza a importância da leitura dos clássicos e, citando sua própria experiência com a leitura de Dom Quixote das crianças, afirma :

 ...não é necessário que a primeira leitura seja um mergulho nos textos originais. Talvez seja até desejável que não o seja, dependendo da idade e da maturidade do leitor. Mas creio que se deve propiciar é a oportunidade de um primeiro encontro. Na esperança de que possa ser sedutor, atraente, tentador. (...)possa equivaler a um convite para a posterior exploração de um território muito rico, já então na fase das leituras por conta própria.(MACHADO, 2002, p.12/13)

Observe-se que a proposta da autora parece ser semelhante à de Lobato : a intenção final é a leitura do texto original, não a substituição pela adaptação. Seria necessário que essa idéia fosse difundida entre os professores e que o estigma de texto clássico como texto “chato” fosse deixado de lado. Infelizmente, muitos são os professores que concordam com o senso comum, embora devessem desempenhar o papel de mediadores de leitura. Há ainda propostas de adaptações do texto clássico para os quadrinhos, como faz a Jorge Zahar Editor, em cujo catálogo podem ser encontradas obras como Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, adaptadas por Stéphanr Heut, encarregada do texto e das ilustrações. Há várias tendências de adaptações para quadrinhos. Algumas apresentam as imagens associadas a um texto simplificado; outras como na adaptação da Ática para o texto de Aluísio Azevedo, O cortiço, trazem trechos do texto original e trechos adaptados associados à imagem. No caso de O cortiço, as imagens são de Rodrigo Rosa e a seleção e adaptação do texto foram feitas por Ivan Jef.
Nessa obra, nota-se que mesmo as imagens trabalham mais com a intenção de sugerir que de descrever, contrariando aquilo que é peculiar ao Naturalismo. Principalmente as cenas marcadas pela presença da sexualidade são amenizadas, de modo que o jovem possa entendê-las, mas não vê-las. Assim perde-se não só parte do estilo pessoal como também elementos característicos do estilo de época, neste caso, a descrição minuciosa, empobrecendo o texto e tirando dele parte importante daquilo que o fez clássico.
 A obra de Machado de Assis parece ser a mais escolhida para esse tipo de adaptação. A editora Escala Nacional fez uma adaptação do conto Uns braços, em que o roteiro e os desenhos são de Francisco S. Vilachã. Nesta obra, são selecionados trechos do texto machadiano, que se faz acompanhar dos desenhos. A voz do narrador permanece também, deixando a obra mais perto do original, atenuado pela presença dos desenhos, dessa outra linguagem mais próxima dos jovens.

ENFIM, PEDRO BANDEIRA

 Pedro Bandeira, no contexto das relações entre clássicos e jovens, apresenta uma outra proposta, que embora tenha como base o cânone, acaba por distanciar-se dele, mais que todas as outras. Em 1985, com A marca de uma lágrima, Bandeira trouxe uma proposta de releitura de um clássico, em que o paratexto, em forma de posfácio intitulado Autor e Obra, é a chave para desvendar o diálogo entre as obras:

Cyrano de Bergerac! A história do espadachim feio e narigudo que escreve cartas de amor para sua amada Roxane em nome do seu rival, o lindo Cristiano, me impressiona desde a adolescência, em Santos (...) Em São Paulo, desde 1961, durante meus anos como ator de teatro, eu pensava na montagem da peça de Edmond Rostand, mas sentia que a linguagfem rebuscada do autor impediria que toda a punjança do enredo fosse compreendida pelas platéias brasileiras. Desde então, a idéia de adaptar Cyrano de Bergerac me acompanhou. (...) Decidi então que esta história de amor seria a adaptação moderna e brasileira de Cyrano de Bergerac. E o meu Cyrano transformou-se em Isabel, uma menina de 14 anos, criativa, inteligente, maravilhosa, mas cheia de problemas.(BANDEIRA, 1986, p.95)

Embora Pedro Bandeira fale em adaptação, somente se o leitor procurar, ao final do livro, essa explicação, fará alguma relação com o texto de Ronstand. O enredo da peça é transportado para os dias atuais e os papeis são invertidos. Ou seja, a menina é aquela que escreve poesia e que tem problemas de auto estima. O nome , como se viu nas palavras de Bandeira, é alterado, pois ela poderia se chamar Cristina, mas é batizada de Isabel, distanciando ainda mais a menina do protagonista inicial, embora os nomes de Cristiano e Roxana se mantenham, em outros personagens. Além disso, há um caso de suspense, pois ocorre uma morte na Escola, onde a narrativa se passa, e as crianças são envolvidas nessa nova trama. Pedro Bandeira se apropria da ideia inicial da peça para criar uma obra totalmente diferente, que obedece aos moldes das narrativas juvenis, marcadas pelo duplo do leitor, com personagens da sua idade, em que o romance se mistura ao mistério; os fatos ocorrem no ambiente comum ao leitor- nesse caso, a escola- e o final traz o encontro entre os jovens, e esses não são o mesmo casal da obra de Rostand, pois Isabel acaba com Fernando, que não havia entrado na história de Cyrano de Bergerac.
Apesar do imenso sucesso da obra– já foram feitas mais de oitenta edições e também já existe como livro digital-e do fato de ser uma narrativa atraente para os jovens, não se pode dizer que a proposta de leitura como ponte para o clássico se realize em A marca de uma lágrima. Para que isso aconteça, é necessária, mais do que nunca, a interferência do professor, que deverá fazer a ponte com o clássico, trazendo-o para o diálogo com a obra de Bandeira. Os alunos, de modo geral, não leem o paratexto, acham que só a leitura do texto principal importa. Como não têm em seu repertório a leitura do clássico, sozinhos não chegarão ao texto gerador.
O mesmo acontece com outro livro de Bandeira: Agora estou sozinha, em que o autor, também no paratexto, explica que o nome da protagonista – Telmah – é o nome do personagem de Shakespeare, Hamlet, ao contrário, e que ele resolveu “recriar este tema emocionante e fantasmagórico, desta vez não com um príncipe, mas com uma menina, a minha Telmah, meu Hamlet às avessas”. (BANDEIRA, 1987, p.87).
O termo recriação mostra-se mais adequado ao processo de criação desse escritor que, como se pode notar, optou por destacar as personagens femininas em seu texto, talvez pela situação que o feminino ocupe no novo contexto, em que se insere sua obra. A preocupação com a caracterização do texto voltado para jovens também faz com que o encontro de Hamlet com o espírito de seu pai seja substituído pela “brincadeira do copo”, que esteve tão em moda na década de oitenta, entre os jovens. Assim, é o copo que soletra:

- Devo chamá-la de quê? Espírito? Fantasma? Mãe?
OUVE TELMAH VINGANÇA
 Uma espécie de torpor começou em suas pernas e subiu pelo corpo da menina. - Vingança? O que é isso? O que quer dizer com isso?
 PRECISO DESCANSAR
 - Diga! Oh, vamos, diga! Que vingança é essa?
 FUI ASSASSINADA ( BANDEIRA,1987,p.19)

A escolha da fonte em caixa alta funciona como um diferencial para as vozes e destaca o movimento do copo, que parece soletrar as palavras. Por isso também a escolha de colocá-las em níveis diferentes, mesmo  aquelas que formam frases. Há outras alterações,além dessas, como a presença de Tiago, namorado de Telmah que fica a seu lado durante toda a investigação e que, ao contrário de Ofélia, permanece vivo Ao final, a madrasta de Telmah morre envenenada, também com vinho, como acontece com Cláudio, em Hamlet, mas a menina e o pai sobrevivem.
 Nota-se, pois, que o autor faz alterações que agradem ao público juvenil, que, como se sabe, dá preferência ao final feliz e à presença do romance sentimental, mesclado ao mistério. Dessa forma, Pedro Bandeira necessita da intervenção do professor, mais uma vez, para que se estabeleça o diálogo entre os dois textos, sem o que sua releitura será lida sem que se perceba a intertextualidade e sem que se cumpra a proposta de incentivo à leitura dos clássicos, tamanha a independência que deu a sua obra.
Não há, na obra de Bandeira, a preocupação com a formação do repertório do leitor, que ao final da leitura continuará a ignorar a existência do texto clássico. Também no que diz respeito ao horizonte de expectativas, o texto de Pedro Bandeira apenas confirma o que já existe, sem propor nada de novo, sem promover, no leitor, mudanças de paradigma, já que se adéqua aos modelos vigentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A discussão sobre a validade da adaptação dos clássicos para crianças e jovens está longe de acabar. Em escolas, cursos, palestras basta tocar no assunto para que os discursos se inflamem entre os grupos dos pró e dos contra. É o que tem ocorrido com a proposta de Patrícia Secco, que com a capa de novidade pretende fazer aquilo que já é feito desde o século XIX no Brasil, que é substituir o clássico por um texto pasteurizado, que não ajuda ao leitor a progredir em seu processo de formação e dá a falsa sensação de conhecimento do clássico. O fato é que o tema deve ser tratado com atenção. Se a intenção é, como quer Ana Maria Machado, fazer da leitura das adaptações uma ponte para a leitura dos clássicos, a figura do professor como mediador de leitura torna-se indispensável. Parece claro que, sozinhos, poucos serão os leitores que buscarão o texto original para o cotejo, na época em que estão fazendo a leitura da adaptação. Esta terá, então, a finalidade de “plantar” o texto na memória de leitura da criança que, quando adulto, preparado para o contato com o original, poderá realizar-se enquanto leitor crítico, capaz de entrar nos bosques clássicos.
Também ficou claro, no percurso deste artigo, que há grandes diferenças entre as obras que se propõem a adaptar os clássicos. Cabe, portanto, mais uma vez, ao professor, a escolha da abordagem que fará, do trabalho que desenvolverá com os alunos, a partir do texto escolhido. Nesse sentido, a coleção Descobrindo os Clássicos, hoje, parece ser a que mais propicia o cotejo entre o original e a adaptação, garantindo que o leitor tenha acesso ao texto original. Percebe-se a proposta de Lobato como ponto de partida e a introdução do texto original como a perspectiva de uma leitura escolarizada, que terá jovens como leitores, não mais crianças.
Constatou-se também que a proposta de Lobato de adaptar as obras clássicas para o público infantojuvenil deu sementes no Brasil, onde há várias propostas diferentes, que fazem a ligação entre o texto juvenil e o clássico.
 Finalmente, a obra de Pedro Bandeira merece atenção especial, se vista como ponte com o texto clássico. Lidas por si só, as obras desse autor têm sucesso garantido dentre os jovens, como indicam as inúmeras comunidades encontradas no Orkut, site de relacionamento que fez enorme sucesso no início dos anos 2000,onde jovens declararam sua preferência pelos livros desse autor, além das inúmeras edições de seus títulos, que ainda fazem sucesso entre os jovens.
No Facebook, o site de relacionamentos que hoje mobiliza jovens e adultos, encontra-se uma página desse autor, com mais de sete mil e seiscentas “curtidas”, o que equivaleria dizer aprovações dos internautas. Foi dele que se retirou o seguinte comentário de uma admiradora :

”Pedro Bandeira gostaria de deixar claro que leria até sua lista de supermercado!!! o que seria da minha adolescência sem o livro a marca de uma lagrima...”(Disponível em : https://www.facebook.com/pages/PedroBandeira/143664439032858?fref=ts. Acesso em 15 /05/2014).

Ou seja, a aprovação da obra aqui citada continua grande. Vistas como ligação com o texto clássico, as obras de Bandeira são as que mais exigem o empenho do professor, que deverá trazer o texto original para sala, seja fisicamente, seja em outra linguagem, como o filme, mas será sua a responsabilidade de apresentar o clássico ao aluno, que se deixado só no caminho, não passará da leitura de entretenimento proposta por Pedro Bandeira.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA PRADO, Amaya O. Dom Quixote das crianças e de Lobato. In: LAJOLO, Marisa;CECCANTINI, João. Monteiro Lobato livro a livro: obra infantil. São Paulo: UNESP, 2008.p. 325- 338.
 ANGELI, José. Dom Quixote: o cavaleiro da triste figura. (adaptação). São Paulo: Scipione, 1990. ASSIS, Machado. Uns Braços. Roteiro e desenhos de Francisco S. Vilachã.São Paulo: Escala educacional, s/d.
BANDEIRA, Pedro. A marca de uma lágrima. São Paulo: Moderna, 1986.
BANDEIRA, Pedro. Agora estou sozinha. São Paulo: Moderna, 1987.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Molin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
 GOMES, Álvaro Cardoso. Por mares há muito navegados. São Paulo: Ática, 2002. LOBATO, Monteiro. Dom Quixote das crianças. São Paulo: Brasiliense, 1968.
 MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
 http://www.scipione.com.br/conhecendoascipione.asp?bt=1- Acesso em 15 de maio de 2014 . Patricia Engel Secco defende projeto de ‘facilitar’ obra de Machado de Assis . Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/arte-e-lazer,patricia-engel-secco-defendeprojeto-de-facilitar-obra-de-machado-de-assis,1164221,0.htm . Acesso em 14/05/ 2014. https://www.facebook.com/pages/Pedro-Bandeira/143664439032858?fref=ts. Acesso em 15/05/2014.