Literatura
Indígena: um olhar sobre si mesmo
Palestra proferida no Clube Liteerário de Paranaguá , em 19/04/2016
Estar
hoje aqui e fazer uma reflexão sobre a Literatura Indígena é muito importante
para mim. Primeiro porque a forma como se comemora o dia do índio no Brasil sempre
me incomodou: com festinhas nas escolas de onde as crianças saem com riscos no
rosto, sem nenhuma reflexão sobre a importância do índio na história de nosso
país.
Segundo,
porque ao longo de meu percurso como professora de Literatura, me deparei inúmeras
vezes com representações do índio, em textos,
no século XVI os cronistas apresentavam um índio selvagem, sanguinário;
no século XIX encontramos índios idealizados, e somente no século XXI,
encontram-se textos escritos por índios.
Peri e Iracema, famosos nos textos de Alencar,
que nunca chegou a ver um índio de perto, estão muito distantes daqueles que
habitam ou habitaram nosso país. Pensados sob a perspectiva eurocêntrica, os
dois foram criados para atender a uma necessidade romântica, de construção de
uma identidade brasileira, que fosse diferente da do colonizador português. O
índio, então, aparece coberto de exotismo, alçado à condição de herói de um
povo, embora ele tenha sido dizimado sistematicamente ao longo da colonização.
Essa
literatura escrita sobre os índios é chamada de indianista. Não se tem a voz do
índio, são conceitos e valores eurocêntricos que baniram da construção dos
personagens tudo que fosse contrário às crenças cristãs. Por isso temos
personagens que falam como cavalheiros, que abandonam suas origens para aceitar
as regras do colonizador: Em “O Guarani”, por exemplo, Peri se torna cristão
pelo amor de Ceci, nega sua tribo e suas crenças.
Deixará!...
exclamou a menina, empalidecendo. Tu queres me abandonar?
— Peri é um selvagem, disse o índio tristemente; não pode viver na
taba dos brancos.
— Por quê? perguntou a menina com ansiedade. Não és tu cristão
como Ceci?
— Sim; porque era preciso ser cristão para te salvar; mas Peri
morrerá selvagem como Ararê.
— Oh! não, disse a menina, eu te ensinarei a conhecer Deus, Nossa
Senhora, as suas virgens e os seus anjinhos. Tu viverás comigo e não me
deixarás nunca!
Esse
diálogo improvável nos dá a ideia de como o índio era representado na
literatura indianista: de forma artificial e sujeito às influências do colonizador.
Há também
textos da literatura indigenista, aquela que é escrita por não índios, a partir
de narrativas colhidas junto aos índios. É o caso de “Assim contavam os velhos
índios”, livro publicado por Paulo Jacob, sobre os índios ianõnãmes, da
Amazônia. Nessas obras, normalmente há uma preocupação didática, de esclarecer
termos que não são comuns ao não índio, como acontece no trecho a seguir: “Os xorimãs (forasteiros, que não é
dos nossos) xirians, também vieram à festa”(p.31). Também é o caso de “O povo
Pataxó e suas histórias”, em que mapas e informações sobre a etnia se misturam.
O século
XXI foi testemunha de uma nova manifestação literária que tem o índio como
protagonista. No rastro dos Estudos Culturais, que deram voz àqueles que antes
eram calados, vários índios começaram a publicar suas obras, falando sobre si,
sobre suas tribos, seus costumes, sem o filtro do “outro”. O ser diferente não
é mais um problema. A essa literatura feita por índios, sobre os índios, dá-se
o nome de indígena.
São
textos que pertencem à tradição oral, muitas vezes construídos de forma
coletiva, pela ancestralidade, ou de autoria individual.
Por isso,
segundo Janice Thiel,
a literatura indígena
se encontra na zona de contato e conflito localizada entre a oralidade e a
escrita, entre línguas nativas e europeias, entre tradições literárias
europeias e indígenas, entre sujeição e resistência.
Como a
maioria dos textos da literatura indígena têm sua origem na tradição oral, a
repetição é uma constante. Janice Thiel afirma que são características dessa
literatura a inserção de estruturas aditivas que conduzem o fluxo narrativo; o
uso de fórmulas linguísticas de repetição do já dito, a fim de garantir
referência ao que já foi dito e continuidade narrativa; interação com o público
de forma a provocar sua reação; referência ao cotidiano da vida humana;
construção de uma identificação empática entre narrador, audiência e
personagem; vinculação com o presente e uso de conceitos dentro de quadros de
referência situacionais
que são
comuns nos contos infantis, de origem semelhante. Daí ser muito frequente a
associação da literatura indígena ao público infantil.
Essa
situação de preservação dos costumes pela oralidade é reproduzida por Yaguarê
Yamã, em seu livro “Kurumi Guaré no coração da Amazônia”, onde se lê o seguinte
trecho:
No que diz respeito à
tradição, foi preocupação de meu pai ensinar-me a cultura de nosso povo. Desde
criança, assim que comecei a entender as coisas, o que ele mais fazia era
arranjar um tempo para contar histórias. Reunia os filhos, sentava-se num banco
no meio do terreiro, me chamava para perto, e quando não era eu era o meu irmão
caçula. Assim, como se estivesse se preparando para uma apresentação, pegava a
flauta e começava a tocá-la bem devagarinho. Aquele som ganhava asas, se
propagava pelo ar e chegava melodiosamente ao ouvido das pessoas. As crianças,
curiosas, corriam para perto e com o maior respeito o rodeavam sentando-se no
chão. Aquele era o ponto de partida para uma viagem ao mundo encantado do povo
Maraguá. Quando estávamos todos sentados, meu pai detinha-se por um instante,
fitava os olhos em cada olhar presente e começava a história. (p.25)
O resgate
da memória, com a intenção de preservar a identidade dos povos, é uma constante
na literatura indígena. Daniel Munduruku, um dos mais respeitados e conhecidos
índios-autores, publicou diversos livros. Dentre eles, gostaria de destacar
“Você lembra, pai?”, em que se reproduz a relação de uma criança indígena com o
pai, mostrando o dia a dia de uma tribo, os conceitos passados às crianças, a
forma como a morte é encarada na tribo... Destaco um trecho que achei
particularmente interessante:
Você lembra, pai,
quando você voltava da caçada sem nada nas mãos, por não ter tido sorte? Mas
vinha com um sorriso no rosto, dizendo que tinha encontrado os seres da
floresta, com eles tinha conversado e brincado, lembrando os tempos em que você
era criança. Você lembra que a gente sentava ao seu lado só para ouvir suas histórias
e nos encantar, esquecendo a fome ou a frustração por você nada ter trazido para casa?
Também de
Daniel Munduruku, são os livros “Contos indígenas” e “Kabá Darebu”. No
primeiro, o autor faz uma seleção de mitos das várias etnias, com a intenção confessa
de “dar uma pequena mostra desta riqueza” e para isso foram selecionados “mitos
que representam a caminhada desses povos”. São eles: Munduruku, Guarani,
Karajá, Terena, Kaigang, Tukano e Taulipang.
Dos
Kaigang:
Os velhos do povo
Kaigang contam aos seus netos que, nos
tempos criadores, a terra viveu um grande dilúvio. Choveu tanto, mas tanto, que
ficou para fora apena o pico da serra Crinjijimbê. Por isso todos os seres
humanos daquela época tentaram alcançar o topo para sobreviver. Muitos tentaram,
mas alguns não conseguiram e morreram afogados. Seus espíritos, conforme contam
os antigos, foram para o centro da serra onde fizeram sua morada.(p.45)
O dilúvio
é um mito presente em várias civilizações e cada uma delas tem uma explicação
diferente sobre ele. Note-se também a figura do velho, como detentor do
conhecimento.
Kabá
Darebu é um livro em que as imagens se sobrepõem ao texto e Daniel Munduruku
procura ilustrar os costumes de sua tribo, por meio da história narrada pelo
personagem que dá nome ao livro: um menino de sete anos.
Outro
autor de destaque é Olívio Jukupé. Paranaense, formado em Filosofia pela PUCPR,
mora na aldeia krukutu. Em “O saci verdadeiro” Jukupé traz a possibilidade de
uma versão indígena do mito eternizado por Monteiro Lobato, narrado por Tio
Barnabé, em “O saci”, como sendo de origem africana,. Um pequeno trecho de “O
saci verdadeiro”, de Jukupé:
Este Saci de quem eles
falam é bem diferente e é mau, tem vários irmãos, nasce da taquara, assusta os
outros e anda com um cachimbo preto e uma carapuça vermelha na cabeça...
- Pois é, este não tem
nada a ver com o nosso, o verdadeiro, aquele em quem nossos antepassados sempre
falavam.
- E ele não era mau,
não é mesmo, mamãe?
- Não, ele é bom e só
aparece para pessoas muito boas e que precisam de ajuda. (p.31)
Em uma
outra vertente, a poética, Eliane
Potiguara surge com “Metade cara, metade máscara”, seu livro de poesia, em que
os poemas falam sobre a situação da
mulher indígena e de sua tribo, de modo geral. Tome-se como exemplo o poema a
seguir;
Que faço com a
minha cara de índia?
E meu sangue
E minha consciência
E minha luta
E nossos filhos?
Brasil, o que faço com a minha cara de índia?
Não sou violência
Ou estupro
Eu sou história
Eu sou cunhã
Barriga brasileira
Ventre sagrado
Povo brasileiro
Ventre que gerou
O povo brasileiro
Hoje está só…
A barriga da mãe fecunda
E os cânticos que outrora cantavam
Hoje são gritos de guerra
Contra o massacre imundo.
A poeta
tem um site, no qual se podem encontrar fotos e muitas informações sobre ela.
Note-se que seu texto poético não tem ecos infantis.
Além desses, há vários outros índios que estão
escrevendo, no desejo de divulgar sua cultura e de desfazer ideias preconceituosas, errôneas, que foram
cristalizadas, principalmente na colonização, e que são responsáveis pela forma
equivocada como algumas pessoas veem os índios hoje. Um dos principais
preconceitos diz respeito à preguiça. É comum ouvirmos as pessoas dizerem que
índio é preguiçoso. Para desconstruir essa ideia, cedo a palavra, mais uma vez,
a Daniel Munduruku, buscando trechos de um belíssimo texto encontrado em seu
site (www.overmundo.com.br): Sobre o tempo e o trabalho
O outro
tempo é o presente. Para estes povos o tempo que importa é o presente. Meu avô
afirmava sempre: “se o momento atual não fosse bom, não se chamaria presente”.
Os indígenas são, portanto, seres do presente
O mais importante, no entanto, do que quero dizer é que quem
vive o presente não tem necessidade de planejar. Planejamento é a tentativa de
congelar os acontecimentos que virão. É ter a ilusão de que se está prevendo o
futuro. E o futuro é pura ilusão.
Quando, em tempos antigos, os portugueses
tentaram escravizar os indígenas esses não aceitaram aquela imposição.
Trabalhar, para o português colonizador, era acumular. Acumulação é uma das
dimensões do futuro. Acumula-se, poupa-se, guarda-se com a intenção de utilizar
depois, amanhã. Os indígenas não sabem o que é o amanhã. E fugiram da
escravidão. Os portugueses inventaram, então, que eles eram preguiçosos demais
para aquela função nobre. E assim ficou.
Tempo e trabalho não são sinônimos. Trabalho e
dinheiro também não. Trabalho não dignifica se ele escraviza. Trabalho demais
nos dá tempo de menos. E tempo de menos tira da gente a alegria do encontro com
os pais, com os filhos, com os amigos. Só o presente é um presente. O futuro é
uma promessa que pode nunca chegar. Os indígenas sabem disso. Por isso vivem o
momento.
Daí depreende-se também muitas explicações sobre
a essência do ser indígena. Quem tem sensibilidade saberá distinguir diferentes
pensamentos presentes em nosso mundo e descobrirá que a diversidade nos torna
ainda mais coloridos.
E queria dizer que é muito mais difícil viver o
presente. Exige muito mais de cada um. O sonho – o futuro – nos desobriga a
olhar para o lado e ver a necessidade diária do outro. O futuro nos torna
egoístas e mesquinhos. Só o presente nos compromete.