quarta-feira, 19 de abril de 2023

Hoje, 19 de abril, dia do indígena

 

Literatura Indígena: um olhar sobre si mesmo

 

 Palestra proferida no Clube Liteerário de Paranaguá , em 19/04/2016

 

Estar hoje aqui e fazer uma reflexão sobre a Literatura Indígena é muito importante para mim. Primeiro porque a forma como se comemora o dia do índio no Brasil sempre me incomodou: com festinhas nas escolas de onde as crianças saem com riscos no rosto, sem nenhuma reflexão sobre a importância do índio na história de nosso país.

Segundo, porque ao longo de meu percurso como professora de Literatura, me deparei inúmeras vezes com representações do índio, em textos,  no século XVI os cronistas apresentavam um índio selvagem, sanguinário; no século XIX encontramos índios idealizados, e somente no século XXI, encontram-se textos escritos por índios.

 Peri e Iracema, famosos nos textos de Alencar, que nunca chegou a ver um índio de perto, estão muito distantes daqueles que habitam ou habitaram nosso país. Pensados sob a perspectiva eurocêntrica, os dois foram criados para atender a uma necessidade romântica, de construção de uma identidade brasileira, que fosse diferente da do colonizador português. O índio, então, aparece coberto de exotismo, alçado à condição de herói de um povo, embora ele tenha sido dizimado sistematicamente ao longo da colonização.

Essa literatura escrita sobre os índios é chamada de indianista. Não se tem a voz do índio, são conceitos e valores eurocêntricos que baniram da construção dos personagens tudo que fosse contrário às crenças cristãs. Por isso temos personagens que falam como cavalheiros, que abandonam suas origens para aceitar as regras do colonizador: Em “O Guarani”, por exemplo, Peri se torna cristão pelo amor de Ceci, nega sua tribo e suas crenças.

 

 Deixará!... exclamou a menina, empalidecendo. Tu queres me abandonar?

— Peri é um selvagem, disse o índio tristemente; não pode viver na taba dos brancos.

— Por quê? perguntou a menina com ansiedade. Não és tu cristão como Ceci?

— Sim; porque era preciso ser cristão para te salvar; mas Peri morrerá selvagem como Ararê.

— Oh! não, disse a menina, eu te ensinarei a conhecer Deus, Nossa Senhora, as suas virgens e os seus anjinhos. Tu viverás comigo e não me deixarás nunca!

 

Esse diálogo improvável nos dá a ideia de como o índio era representado na literatura indianista: de forma artificial e sujeito  às influências do colonizador.

Há também textos da literatura indigenista, aquela que é escrita por não índios, a partir de narrativas colhidas junto aos índios. É o caso de “Assim contavam os velhos índios”, livro publicado por Paulo Jacob, sobre os índios ianõnãmes, da Amazônia. Nessas obras, normalmente há uma preocupação didática, de esclarecer termos que não são comuns ao não índio, como acontece no trecho a  seguir: “Os xorimãs (forasteiros, que não é dos nossos) xirians, também vieram à festa”(p.31). Também é o caso de “O povo Pataxó e suas histórias”, em que mapas e informações sobre a etnia se misturam.

 

O século XXI foi testemunha de uma nova manifestação literária que tem o índio como protagonista. No rastro dos Estudos Culturais, que deram voz àqueles que antes eram calados, vários índios começaram a publicar suas obras, falando sobre si, sobre suas tribos, seus costumes, sem o filtro do “outro”. O ser diferente não é mais um problema. A essa literatura feita por índios, sobre os índios, dá-se o nome de indígena.

São textos que pertencem à tradição oral, muitas vezes construídos de forma coletiva, pela ancestralidade, ou de autoria individual.

Por isso, segundo Janice Thiel,

 

a literatura indígena se encontra na zona de contato e conflito localizada entre a oralidade e a escrita, entre línguas nativas e europeias, entre tradições literárias europeias e indígenas, entre sujeição e resistência.

 

Como a maioria dos textos da literatura indígena têm sua origem na tradição oral, a repetição é uma constante. Janice Thiel afirma que são características dessa literatura a inserção de estruturas aditivas que conduzem o fluxo narrativo; o uso de fórmulas linguísticas de repetição do já dito, a fim de garantir referência ao que já foi dito e continuidade narrativa; interação com o público de forma a provocar sua reação; referência ao cotidiano da vida humana; construção de uma identificação empática entre narrador, audiência e personagem; vinculação com o presente e uso de conceitos dentro de quadros de referência situacionais

que são comuns nos contos infantis, de origem semelhante. Daí ser muito frequente a associação da literatura indígena ao público infantil.

Essa situação de preservação dos costumes pela oralidade é reproduzida por Yaguarê Yamã, em seu livro “Kurumi Guaré no coração da Amazônia”, onde se lê o seguinte trecho:

 

No que diz respeito à tradição, foi preocupação de meu pai ensinar-me a cultura de nosso povo. Desde criança, assim que comecei a entender as coisas, o que ele mais fazia era arranjar um tempo para contar histórias. Reunia os filhos, sentava-se num banco no meio do terreiro, me chamava para perto, e quando não era eu era o meu irmão caçula. Assim, como se estivesse se preparando para uma apresentação, pegava a flauta e começava a tocá-la bem devagarinho. Aquele som ganhava asas, se propagava pelo ar e chegava melodiosamente ao ouvido das pessoas. As crianças, curiosas, corriam para perto e com o maior respeito o rodeavam sentando-se no chão. Aquele era o ponto de partida para uma viagem ao mundo encantado do povo Maraguá. Quando estávamos todos sentados, meu pai detinha-se por um instante, fitava os olhos em cada olhar presente e começava a história. (p.25)

 

O resgate da memória, com a intenção de preservar a identidade dos povos, é uma constante na literatura indígena. Daniel Munduruku, um dos mais respeitados e conhecidos índios-autores, publicou diversos livros. Dentre eles, gostaria de destacar “Você lembra, pai?”, em que se reproduz a relação de uma criança indígena com o pai, mostrando o dia a dia de uma tribo, os conceitos passados às crianças, a forma como a morte é encarada na tribo... Destaco um trecho que achei particularmente interessante:

 

Você lembra, pai, quando você voltava da caçada sem nada nas mãos, por não ter tido sorte? Mas vinha com um sorriso no rosto, dizendo que tinha encontrado os seres da floresta, com eles tinha conversado e brincado, lembrando os tempos em que você era criança. Você lembra que a gente sentava ao seu lado só para ouvir suas histórias e nos encantar, esquecendo a fome ou a frustração  por você nada ter trazido para casa?

 

Também de Daniel Munduruku, são os livros “Contos indígenas” e “Kabá Darebu”. No primeiro, o autor faz uma seleção de mitos das várias etnias, com a intenção confessa de “dar uma pequena mostra desta riqueza” e para isso foram selecionados “mitos que representam a caminhada desses povos”. São eles: Munduruku, Guarani, Karajá, Terena, Kaigang, Tukano e Taulipang.

Dos Kaigang:

 

Os velhos do povo Kaigang contam  aos seus netos que, nos tempos criadores, a terra viveu um grande dilúvio. Choveu tanto, mas tanto, que ficou para fora apena o pico da serra Crinjijimbê. Por isso todos os seres humanos daquela época tentaram alcançar o topo para sobreviver. Muitos tentaram, mas alguns não conseguiram e morreram afogados. Seus espíritos, conforme contam os antigos, foram para o centro da serra onde fizeram sua morada.(p.45)

 

O dilúvio é um mito presente em várias civilizações e cada uma delas tem uma explicação diferente sobre ele. Note-se também a figura do velho, como detentor do conhecimento.

Kabá Darebu é um livro em que as imagens se sobrepõem ao texto e Daniel Munduruku procura ilustrar os costumes de sua tribo, por meio da história narrada pelo personagem que dá nome ao livro: um menino de sete anos.

 

Outro autor de destaque é Olívio Jukupé. Paranaense, formado em Filosofia pela PUCPR, mora na aldeia krukutu. Em “O saci verdadeiro” Jukupé traz a possibilidade de uma versão indígena do mito eternizado por Monteiro Lobato, narrado por Tio Barnabé, em “O saci”, como sendo de origem africana,. Um pequeno trecho de “O saci verdadeiro”, de Jukupé:

 

Este Saci de quem eles falam é bem diferente e é mau, tem vários irmãos, nasce da taquara, assusta os outros e anda com um cachimbo preto e uma carapuça vermelha na cabeça...

- Pois é, este não tem nada a ver com o nosso, o verdadeiro, aquele em quem nossos antepassados sempre falavam.

- E ele não era mau, não é mesmo, mamãe?

- Não, ele é bom e só aparece para pessoas muito boas e que precisam de ajuda. (p.31)

 

 

Em uma outra vertente, a poética,  Eliane Potiguara surge com “Metade cara, metade máscara”, seu livro de poesia, em que os poemas falam sobre a  situação da mulher indígena e de sua tribo, de modo geral. Tome-se como exemplo o poema a seguir;

 

Que faço com a minha cara de índia?

           

E meu sangue

            E  minha consciência

            E minha luta

            E nossos filhos?

 

            Brasil, o que faço com a minha cara de índia?

 

            Não sou violência

            Ou estupro

            Eu sou história

            Eu sou cunhã

            Barriga brasileira

            Ventre sagrado

            Povo brasileiro

 

            Ventre que gerou

            O povo brasileiro

            Hoje está só…

            A barriga da mãe fecunda

            E os cânticos que outrora cantavam

            Hoje são gritos de guerra

            Contra o massacre imundo.

 

A poeta tem um site, no qual se podem encontrar fotos e muitas informações sobre ela. Note-se que seu texto poético não tem ecos infantis.

Além desses, há vários outros índios que estão escrevendo, no desejo de divulgar sua cultura e de desfazer  ideias preconceituosas, errôneas, que foram cristalizadas, principalmente na colonização, e que são responsáveis pela forma equivocada como algumas pessoas veem os índios hoje. Um dos principais preconceitos diz respeito à preguiça. É comum ouvirmos as pessoas dizerem que índio é preguiçoso. Para desconstruir essa ideia, cedo a palavra, mais uma vez, a Daniel Munduruku, buscando trechos de um belíssimo texto encontrado em seu site (www.overmundo.com.br): Sobre o tempo e o trabalho

 

outro tempo é o presente. Para estes povos o tempo que importa é o presente. Meu avô afirmava sempre: “se o momento atual não fosse bom, não se chamaria presente”. Os indígenas são, portanto, seres do presente

O mais importante, no entanto, do que quero dizer é que quem vive o presente não tem necessidade de planejar. Planejamento é a tentativa de congelar os acontecimentos que virão. É ter a ilusão de que se está prevendo o futuro. E o futuro é pura ilusão.
Quando, em tempos antigos, os portugueses tentaram escravizar os indígenas esses não aceitaram aquela imposição. Trabalhar, para o português colonizador, era acumular. Acumulação é uma das dimensões do futuro. Acumula-se, poupa-se, guarda-se com a intenção de utilizar depois, amanhã. Os indígenas não sabem o que é o amanhã. E fugiram da escravidão. Os portugueses inventaram, então, que eles eram preguiçosos demais para aquela função nobre. E assim ficou.
Tempo e trabalho não são sinônimos. Trabalho e dinheiro também não. Trabalho não dignifica se ele escraviza. Trabalho demais nos dá tempo de menos. E tempo de menos tira da gente a alegria do encontro com os pais, com os filhos, com os amigos. Só o presente é um presente. O futuro é uma promessa que pode nunca chegar. Os indígenas sabem disso. Por isso vivem o momento.
Daí depreende-se também muitas explicações sobre a essência do ser indígena. Quem tem sensibilidade saberá distinguir diferentes pensamentos presentes em nosso mundo e descobrirá que a diversidade nos torna ainda mais coloridos.
E queria dizer que é muito mais difícil viver o presente. Exige muito mais de cada um. O sonho – o futuro – nos desobriga a olhar para o lado e ver a necessidade diária do outro. O futuro nos torna egoístas e mesquinhos. Só o presente nos compromete.

 



ENLLIJ 2023

 Este ano teremos o VII ENLLIJ. Em breve, teremos novas notícias.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Marina Colasanti em prosa e verso

 Este ano, teremos no projeto Pirlimpimpar, estudo sobre a obra de Marina Colasanti. A intenção é começar com seus contos de fadas e chegar aos poemas par crianças.

O ano promete!



segunda-feira, 28 de junho de 2021

O VI ENLLIJ



 O VI ENLLIJ já tem data certa: dias 20, 21 e 22 de outubro de 2021.

Fiquem atentos!



segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A violência contra a mulher nas Literaturas Infantil e Juvenil

 

Entre fadas e bruxas: a violência contra a mulher no reino da fantasia

 

Cátia Toledo Mendonça

 

A violência contra a mulher ganhou espaço na mídia muito recentemente, embora venha sendo denunciada pela Literatura há muito tempo. Escravas subjugadas pelos amos, mulheres mortas por maridos enraivecidos ou submetidas à tortura psicológica, a partir de uma simples desconfiança, abundam a Literatura Brasileira dita adulta. Capitu, silenciada, sem direito à defesa, é forçada por Bentinho a se exiliar, Madalena, levada ao suicídio pela pressão feita por Paulo Honório são exemplos de violência psicológica.

A Convenção de Belém do Pará (1994) definiu violência contra as mulheres como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (Art. 1)

Nesse sentido, Capitu não teve direito de defesa- mesmo que ela não pudesse ser feita- e terminou privada do convívio social. Madalena, em seu desespero pela opressão causada pelas insistentes acusações de Paulo Honório, fere a si mesma, e acaba morrendo. Embora não seja relatada a violência física, a  tortura psicológica a que essas mulheres são submetidas  é exemplo de uma ação , baseada no gênero- os maridos agem despoticamente, não permitindo a defesa das esposas -que causa dano psicológico e até a morte.

No campo da Literatura dedicada a jovens e crianças, embora a questão também exista, parece ser diluída, talvez porque a mãe má, como designa Jung, seja uma constante, na figura da bruxa, a quem toda violência parece ser justificada, principalmente por sua maldade. O universo das histórias infantis é povoado por madrastas malvadas, que tomam o lugar de mães boas que morreram, irmãs feias, feiticeiras e ogras. Desse modo, mulheres são jogadas em fornos (João e Maria), em abismos (Branca de Neve) ou mesmo mutiladas, como acontece em Cinderela, conto em que as irmãs são levadas a se mutilarem para que possam casar com o príncipe, sonho feminino que atravessa os séculos.

A violência contra a mulher, na LIJ, nem sempre tem o homem como produtor, mas ele é sempre o motivo...As irmãs, em Cinderela, versão dos Grimm,  são mutiladas pela própria mãe, que acha normal cortar um pedaço dos pés das filhas, caso isso seja em prol do que seria o bem maior feminino na época(por volta de 1812): o casamento com o príncipe. Para agradar ao homem, a mutilação é justificada. Na China, as mulheres costumavam amarrar seus pés, para que não crescessem e ficassem do agrado masculino, pois os pés pequenos eram valorizados pelos homens.   Nesse sentido, a própria mulher acaba por concordar com a violência e até promovê-la, o que de certa forma legitima o comportamento violento masculino, colocando a mulher numa situação de subjugo.

Nos contos tradicionais há um, em particular, que nos chama a atenção pela violência com que as mulheres são tratadas pelo marido. O nome do homem referido por Marina Warner como “amante demoníaco” é o Barba Azul.

O conto publicado por Charles Perrault, em 1697, conta a história de uma mulher que se casa com um misterioso homem de barba azul. Ele já havia se casado com outras mulheres que desapareceram, sem que se pudesse saber o que lhes havia acontecido. Barba Azul conquista Fátima (o nome da personagem ´informação de Marina Warner) com festas, presentes e, logo depois de se conhecerem, o casamento é celebrado.

Um mês depois de casados, ele viaja. Vale a pena transcrever o trecho que antecede a viagem:

 

Deu à mulher uma argola com chaves penduradas e disse: “Estas são as chaves dos dois grandes depósitos, aqui estão as das baixelas de ouro e prata que não são de uso diário, estas são as dos meus cofres-fortes, onde guardo meu ouro e minha prata, estas dos escrínios onde guardo minhas predarias, e aqui está a chave mestra de todos os aposentos da casa. Quanto a esta pequenina chave aqui, é a chave do gabinete na ponta longa da galeria do térreo. Abra tudo que quiser. Vá aonde bem entender. Mas proíbo-lhe terminantemente de entrar nesse quartinho, e se abrir uma fresta que seja dessa porta nada a protegerá de minha ira”. (p.84/85)

 

Fátima desobedece ao marido e descobre, ao abrir a porta, o destino das outras esposas:

 

De início não conseguiu ver coisa alguma, pois as janelas estavam fechadas. Após alguns instantes, começou a perceber que o assoalho estava coberto de sangue coagulado, e que naquele sangue se refletiam os cadáveres de várias mulheres mortas e penduradas ao longo das paredes (eram todas as mulheres que Barba Azul desposara, uma depois da outra). (p.87)

 

Marina Warner, em Da fera à Loira (1999), destaca que “a narrativa se concentra no ato de desobediência de Fátima, não nos assassinatos em massa de Barba Azul (WARNER, 1999. p.276) A autora destaca ainda que a forma como Perrault constrói o texto destaca a “bondade” de Barba Azul, que dá à mulher tudo que ela poderia desejar e lhe faz uma única restrição, que não é seguida em função da “desobediência” feminina e que esta merece ser punida. Por isso a ênfase é dada nesse sentido, como acontece na narração do mito de Adão e Eva, no qual é a desobediência feminina a causa da expulsão do paraíso, ou mesmo de Chapeuzinho Vermelho, que desobedece à ordem de não falar com ninguém. A punição, em todos os casos, é vista como “adequada”. A mulher “mereceu”!

O feminicídio, em Barba Azul, só para porque os irmãos de Fátima chegam e matam o “amante demoníaco”.  Suas últimas palavras teriam sido, em uma outra versão, bem reveladoras do pensamento da época em relação à mulher :“espero que ela nunca mais quebre uma promessa, desobedeça aqueles aquém prometeu submissão, nem ceda ao impulso da curiosidade proibida e impropria” (WARNER, 1999.p.279) Ou seja, a mulher é a culpada, por ter se deixado levar pela curiosidade e  atitude do homem estaria, desse modo , justificada.

Dando um salto no tempo, vamos encontrar uma autora que, no rastro do feminismo dos anos 70, cria histórias em que a violência contra a mulher é denunciada: Marina Colasanti.

As histórias que Marina Colasanti cria tratam, principalmente da violência psicológica exercida pelo homem que quer mudar a mulher, para que ela se adeque ao desenho que tem em mente. São vários os seus contos que giram em torno dessa temática. Em todos eles, a mulher não cede aos desejos do homem e se mantém íntegra. É o que acontece no conto que vou abordar a partir de agora: Entre as folhas do verde O, publicado em seu livro de estreia na literatura Infantojuvenil, Uma ideia toda azul, de 1979.

Resgatando os elementos feéricos do conto de fadas tradicional, há um príncipe que vai a uma caçada : “Foi assim que o príncipe a viu. Metade mulher, metade corça, bebendo no regaço. A mulher tão linda. A corça tão ágil. A mulher ele queria amar, a corça ele queria matar” (COLASANTI, 1979.p.39). Então a mulher-corça é levada para o palácio, onde é transformada, por um feiticeiro, em mulher, tão somente.

 

Quando a corça acordou, já não era mais corça. Duas pernas só e compridas, um corpo branco. Tentou levantar, não conseguiu. O príncipe lhe deu a mão. Vieram as costureiras e a cobriram de roupas. Vieram os joalheiros e a cobriram de joias. Vieram os mestres de dança para ensinar-lhe a andar. Só não tinha a palavra. E o desejo de ser mulher (p41)

 

A transformação da mulher-corça em mulher pressupõe dois tipos de violência: a física, pois seu corpo é alterado, e a psicológica, na qual me deterei por entender que a física é uma metáfora da psicológica. A corça, segundo Chevalier ( 2006, p.284)”é o animal de corrida ligeira e veloz como  flecha{...} A caça à corça, na tradição mística dos celtas, simboliza também a perseguição à sabedoria”. Retirar dela a parte corça é, de certa forma, tirar-lhe a sabedoria. Da mesma forma, segundo Chevalier, “o animal que existe em nós e que  tantos embaraços causou ao moralismo judaico-cristão, é o conjunto de forças profundas  que nos animam e, em primeiro lugar, está a libido” Ou seja, retirando o lado animal da mulher que era também uma corça, ele não só a mutila como pretende dominar o seu lado “selvagem”, no qual está a libido. A libido feminina é tradicionalmente condenada, como aconteceu com Lilith, a primeira mulher, condenada a se tornar um demônio, por não aceitar que sua sexualidade fosse controlada.

Mas, ao contrário do que acontecia nos contos tradicionais, no  de Colasanti a mulher não se deixa dominar e

 

Sete dias ela levou para aprender sete passos. E na manhã do oitavo dia, quando acordou e viu a porta aberta, juntou sete passos e mais sete, atravessou o corredor, desceu a escada, cruzou o pátio e correu para a floresta à procura da sua rainha. O sol ainda brilhava quando a corça saiu da floresta, só corça, não mais mulher. (p.41)

 

Ainda que diferente do que era no original, a mulher mantém em si o que lhe era mais caro: sua agilidade, sua liberdade de ir e vir, sua sexualidade. A violência contra a mulher deixa marcas, mas não é aceita como algo normal. Há um movimento contrário, que a neutraliza. O homem não consegue modicar a mulher, conforme seria seu desejo. A literatura, aqui, funciona como denúncia, não reforça um modelo social. Essa é uma marca da literatura feminina de Colasanti: a mulher sempre luta para manter-se inteira, a união com um homem se dá de modo que os dois permaneçam inteiros, ou ela não acontece.

 

O último texto deque vamos tratar é também contemporâneo: Sapato de Salto, de Lygia Bojunga Nunes. Contemporânea a Colasanti, Bojunga surge na década de 70 com a obra Os colegas (1972), e mais tarde, em 1982, pelo conjunto de sua obra, recebeu o prêmio Hans Christian Andersen, o Nobel de Literatura Infantojuvenil. A temática do feminino é uma constante em sua obra, tratado às vezes com uma abordagem psicológica, como em A Bolsa Amarela, às vezes trazendo uma visão mais ampla da mulher do que a de mãe, como acontece em várias histórias infantis. É o que encontramos, por exemplo, no contoTchau, inserido em seu único livro de contos, que tem o mesmo título. Nele, a mulher, a princípio designada como Mãe, encontra um grego, por quem se apaixona, e se separa do pai, partindo com o novo amor para longe. A partir daí ela é a mãe, que é também a mulher apaixonada. O uso da letra minúscula indica que esse não é mais o seu nome, mas uma função. Os dois lados da mulher- a mãe e a mulher- trazem a possibilidade da mulher inteira, o que não é aceito pelo marido. Diante disso, a mulher tem opção e opta pelo lado mulher, quando sai e fecha a porta atrás de si.

Em Sapato de Salto, aparecem várias nuances do feminino, como a menina-mulher que engravida sem estar casada e chega ao suicídio, porque não consegue lidar com a “vergonha” de sua mãe , porque não tem apoio da família. Para ela, a mãe havia sonhado um casamento tradicional e uma profissão: ser professora. E é sua filha, Sabrina, deixada recém-nascida ainda em um orfanato, que nos traz a história de violência mais forte contra a mulher, das várias que aparecem no livro.

Depois de dez anos no orfanato, Sabrina finalmente é “adotada”.  Aquele que deveria ser o seu primeiro Lar, torna-se um tormento.

No site Lexmagister, (acesso em  01/11/2200 (http://www.lex.com.br/doutrina_27231125_ADOCAO_DE_MA_FE_E_TRABALHO_INFANTIL.aspx) há um artigo que chama a atenção para a adoção de má fé, expressão que caracteriza a adoção de

 

 Principalmente crianças/adolescentes do sexo feminino, na idade de 6,7,8,9,10,11 e adolescentes, todas oriundas de famílias extremamente pobre e carente, de cor negra ou parda, mas com as de cor branca também acontece,

 

 que são levadas não para serem filhas, mas empregadas. Segundo o mesmo site,

 

A adoção atribui a condição de filho ao adotado com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. O adotando deve contar no máximo, dezoito anos à data do pedido, salvo se já estiver sob guarda ou tutela dos adotantes.

 

No entanto, não é isso que acontece com Sabrina. Logo que chega à casa, sua posição na família fica clara: foi “adotada” para cuidar das crianças, sem salário, sem direito à escola, a roupas ou brincadeiras. Dona Matilde, desde o início, esclarece: “Você não veio para brincar, veio para trabalhar” (p.7) e assim começa a saga de Sabrina naquela casa. Seu lugar fica logo determinado: “Vá lá pra cozinha e espera. Depois vou falar com você. Aquela porta ali. Ei! E esse embrulho no chão?” –“É minha roupa.”(p.8 e 9) E a pouca roupa de Sabrina também é motivo de reclamação: 

 

 Mas ordenado não precisa: a gente vai dar casa, comida, roupa, calçado. E você viu o embrulhinho que ela trouxe, não viu? É sempre assim: elas chagam sem nada. A gente tem que dar tudo. E você viu como ela é forte? é do tipo que tá sempre com fome (p.11)

 

Nessa situação de adotada, mas não parte da família, Sabrina sofre várias humilhações impostas por Matilde e o trabalho só aumenta:

 

E de dia, o dia todinho, a Sabrina tinha que distrair a Marilda e o Betinho. E a roupa dos dois para lavar e passar. E a mamadeira para preparar. E a calça para trocar. E o mingau pra misturar. E o telefone para atender (taí à toa, menina? Quando o telefone toca, já sabe, atende logo). E toda hora uma comprinha pra fazer. (p11)

 

E quando a menina, carente, tenta uma aproximação afetiva, a resposta de Matilde é bem clara:

 

-Posso  chamar a senhora de tia?

- Por que, ué?

-É que se eu chamo de mãe a senhora pode não gostar.

-Nem tia, nem mãe, nem coisa nenhuma, que que é isso? Tá esquecendo que é babá das crianças? ora já se viu... (p.13)

 

Nota-se, a partir desse trecho, que a menina não se via como empregada, mas como membro da família. A condição de adotada é para ela a de encontrar uma família, uma mãe, um pai...

Mas seu Gonçalves não tinha intenção de ser seu pai...e começa a olhar para ela com olhos de cobiça.

 

Seu Gonçalves ria daquela história de Sabrina trocar os nomes. E ficava esquecido da vida vendo ela e os filhos brincando. Quando ela virava cambalhota pra divertir as crianças, ele ainda ria mais. E meio que fechava o olho querendo ver melhor a calcinha que Sabrina usava. (p.14)

 

No site Just.com.br, encontra-se o seguinte texto em relação à pedofilia:

tecnicamente é mais adequado utilizar o termo agressor sexual para descrever as pessoas que mantém relações sexuais com crianças e adolescentes, já que este conceito inclui os pedófilos, mas não se limita a eles (RODRIGUES, William Thiago de Souza.(Acesso em 03/11/20), que traz a visão do pedófilo não só como doente, mas como agressor.

Sabrina , a princípio, acha que eles estão jogando, pois os presentes se sucedem e ele pede que , além de não contar pra ninguém, ainda fale baixinho quando ele entra no quarto.

A cena em que a primeira relação acontece é muito forte:

 

- Que que há, seu Gonçalves? Não faz isso, pelo amor de Deus. O senhor é que nem meu pai. Pai não faz assim com a gente. – Conseguiu se desprender das mãos dele. Correu para porta. Ele pulou atrás, arrastou ela de volta pra cama:

-Vem cá com o teu papaizinho.

- Não faz isso! Por favor! Não faz isso! -  Tremia, suava. – Não faz isso!

Fez. (p.20)

 

Nota-se que a resistência da menina não é levada em conta e ela se vê traída em seus sonhos mais pueris. Não consegui vislumbrar uma forma de sair daquele lugar. Não tem família nem para onde voltar. A violência psicológica passa a conviver com a física.

 

E o grande segredo dos dois passou a animar a vida dele, a botar sobra nos dias dela; e de noite, tudo que é noite, a mesma tensão: ele hoje vem? O olho hipnotizado pela maçaneta redonda, de louça branca, o coração batendo assustado. Foi se esquecendo de prestar atenção no estudo, foi se esquecendo de pensar que cor era isso e aquilo, nunca mais desenhou. (p21)

 

Matilde descobre as fugidas do marido, mas não toma atitude em relação a ele. Ao contrário, “Dona Matilde começou a bater na Sabrina cada vez que pegava ela cochilando”(p.25) E a vida de Sabrina se transforma em um verdadeiro inferno. Há que se destacar a situação de Matilde, que sabe do que acontece em sua casa, mas finge não saber, para não arriscar sua situação social.

Os tormentos de Sabrina só terminam quando a tia Inês, que ela nem sabia que existia, veio resgatá-la. Porém, na hora de ir embora “Quando Sabrina chegou mais perto pra dar um beijo de despedida, recebeu uma bofetada na cara: “-É pra você não se esquecer que eu não vou me esquecer. - E bateu a porta com a mesma força da bofetada.” (p.36) Pela atitude de Matilde, nota-se que ela culpa Sabrina e não Gonçalves. Outra vez, a culpa é da mulher e, por isso, deve ser punida.

A partir daí, Sabrina vai viver com a família que descobriu, mas a dor causada por seu Gonçalves não se apaga. Mais tarde, quando se vê de novo em situação de abandono, a prostituição parece-lhe ser a única solução. Foi ensinada a como ganhar presentes e até mesmo dinheiro, pois às vezes Gonçalves deixava algum na cadeira, no quarto, antes de sair, atitude emblemática de como via a menina de 10 anos.

O abuso infantil, infelizmente, é mais comum do que se pode imaginar. Via de regra acontece dentro de casa e, inúmeras vezes, o pai é o agressor. Há vários contos infantis que denunciam esse fato. Charles Perrault , em 1697, publicou “Pele de asno”, conto em que uma princesa tem que fugir de casa para escapar ao assédio do pai. Recentemente, A triste história de Eredegalda, do livro Enquanto o sono não vem, de Mauro Brant e Ana maria Moura retomou a temática. A reação da sociedade foi imensa e o livro foi proibido nas escolas.

No site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos humanos, encontramos as seguintes informações:

 O levantamento da ONDH permitiu identificar que a violência sexual acontece, em 73% dos casos, na casa da própria vítima ou do suspeito, mas é cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias.O suspeito é do sexo masculino em 87% dos registros e, igualmente, de idade adulta, entre 25 e 40 anos, para 62% dos casos. A vítima é adolescente, entre 12 e 17 anos, do sexo feminino em 46% das denúncias recebidas. (acesso em 3/10/20 , www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/maio/ministerio-divulga-dados-de-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes)

Infelizmente, a sociedade não aceita a literatura como denúncia. Assim como Matilde preferiu culpar Sabrina pelos atos de Gonçalves, a sociedade prefere ver o texto que poderia alertar mães e professoras sobre o que está acontecendo com a criança como “doutrinação”. E mais uma vez as Sabrinas são caladas.

 

Considerações finais

Depois das explanações, da viagem pelos textos literários, pode-se inferir que a violência contra a mulher pouco mudou desde o século XVII. Da mesma forma como Fátima quase foi morta por seu marido e no fim acaba sendo responsabilizada pelos acontecimentos, os feminicídios continuam a acontecer e as mulheres responsabilizadas, porque estavam com “roupas provocantes”, porque não obedeceram, porque....

Por outro lado, a violência psicológica também continua presente. Mulheres continuam a ser silenciadas, invadidas, sem que possam fazer nada, ou porque não têm como se manter ou porque têm medo da violência física.

Recentemente, uma mulher que era virgem ainda foi violentada e o caso foi denunciado. Na corte, advogados e juiz a trataram como criminosa, fizeram pouco caso de sua dor, inocentaram o agressor, em uma caso exemplar de como a mulher é mantida em silêncio, uma vez que a denúncia só causa mais sofrimento.

E finalmente, as vozes infantis, que dizem NÃO ao assédio de pais, padrastos  tios ou irmãos, que a literatura tem tentado fazer ouvir, são caladas em nome de uma pretensa moralidade, que só faz encobrir o que não se deseja publicar e quer perpetuar a opressão feminina, colocando o homem como seu dono e senhor.

Tudo isso só terminará quando a mulher se conscientizar de que não é propriedade de ninguém, que não deve obediência ao homem e que tem tanto direito à vida quanto este.

 

Referências

BOJUNGA, Lygia. Sapato de Salto. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2006.

COLASANTI, Marina. Uma ideia toda azul. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974.

Contos de Fadas de Perrault, Grimm, Andersen e outros. Rio de Janeiro, Zahar Editora, 2010

CHEVALIER, J & GHEERBANT, A. Dicionário de Símbolos. 20ed.Rio de Janeiro: José Olympo Editora, 1982

WARNER, Marina. Da fera à loira. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

 

 

 

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