quarta-feira, 19 de abril de 2023

Hoje, 19 de abril, dia do indígena

 

Literatura Indígena: um olhar sobre si mesmo

 

 Palestra proferida no Clube Liteerário de Paranaguá , em 19/04/2016

 

Estar hoje aqui e fazer uma reflexão sobre a Literatura Indígena é muito importante para mim. Primeiro porque a forma como se comemora o dia do índio no Brasil sempre me incomodou: com festinhas nas escolas de onde as crianças saem com riscos no rosto, sem nenhuma reflexão sobre a importância do índio na história de nosso país.

Segundo, porque ao longo de meu percurso como professora de Literatura, me deparei inúmeras vezes com representações do índio, em textos,  no século XVI os cronistas apresentavam um índio selvagem, sanguinário; no século XIX encontramos índios idealizados, e somente no século XXI, encontram-se textos escritos por índios.

 Peri e Iracema, famosos nos textos de Alencar, que nunca chegou a ver um índio de perto, estão muito distantes daqueles que habitam ou habitaram nosso país. Pensados sob a perspectiva eurocêntrica, os dois foram criados para atender a uma necessidade romântica, de construção de uma identidade brasileira, que fosse diferente da do colonizador português. O índio, então, aparece coberto de exotismo, alçado à condição de herói de um povo, embora ele tenha sido dizimado sistematicamente ao longo da colonização.

Essa literatura escrita sobre os índios é chamada de indianista. Não se tem a voz do índio, são conceitos e valores eurocêntricos que baniram da construção dos personagens tudo que fosse contrário às crenças cristãs. Por isso temos personagens que falam como cavalheiros, que abandonam suas origens para aceitar as regras do colonizador: Em “O Guarani”, por exemplo, Peri se torna cristão pelo amor de Ceci, nega sua tribo e suas crenças.

 

 Deixará!... exclamou a menina, empalidecendo. Tu queres me abandonar?

— Peri é um selvagem, disse o índio tristemente; não pode viver na taba dos brancos.

— Por quê? perguntou a menina com ansiedade. Não és tu cristão como Ceci?

— Sim; porque era preciso ser cristão para te salvar; mas Peri morrerá selvagem como Ararê.

— Oh! não, disse a menina, eu te ensinarei a conhecer Deus, Nossa Senhora, as suas virgens e os seus anjinhos. Tu viverás comigo e não me deixarás nunca!

 

Esse diálogo improvável nos dá a ideia de como o índio era representado na literatura indianista: de forma artificial e sujeito  às influências do colonizador.

Há também textos da literatura indigenista, aquela que é escrita por não índios, a partir de narrativas colhidas junto aos índios. É o caso de “Assim contavam os velhos índios”, livro publicado por Paulo Jacob, sobre os índios ianõnãmes, da Amazônia. Nessas obras, normalmente há uma preocupação didática, de esclarecer termos que não são comuns ao não índio, como acontece no trecho a  seguir: “Os xorimãs (forasteiros, que não é dos nossos) xirians, também vieram à festa”(p.31). Também é o caso de “O povo Pataxó e suas histórias”, em que mapas e informações sobre a etnia se misturam.

 

O século XXI foi testemunha de uma nova manifestação literária que tem o índio como protagonista. No rastro dos Estudos Culturais, que deram voz àqueles que antes eram calados, vários índios começaram a publicar suas obras, falando sobre si, sobre suas tribos, seus costumes, sem o filtro do “outro”. O ser diferente não é mais um problema. A essa literatura feita por índios, sobre os índios, dá-se o nome de indígena.

São textos que pertencem à tradição oral, muitas vezes construídos de forma coletiva, pela ancestralidade, ou de autoria individual.

Por isso, segundo Janice Thiel,

 

a literatura indígena se encontra na zona de contato e conflito localizada entre a oralidade e a escrita, entre línguas nativas e europeias, entre tradições literárias europeias e indígenas, entre sujeição e resistência.

 

Como a maioria dos textos da literatura indígena têm sua origem na tradição oral, a repetição é uma constante. Janice Thiel afirma que são características dessa literatura a inserção de estruturas aditivas que conduzem o fluxo narrativo; o uso de fórmulas linguísticas de repetição do já dito, a fim de garantir referência ao que já foi dito e continuidade narrativa; interação com o público de forma a provocar sua reação; referência ao cotidiano da vida humana; construção de uma identificação empática entre narrador, audiência e personagem; vinculação com o presente e uso de conceitos dentro de quadros de referência situacionais

que são comuns nos contos infantis, de origem semelhante. Daí ser muito frequente a associação da literatura indígena ao público infantil.

Essa situação de preservação dos costumes pela oralidade é reproduzida por Yaguarê Yamã, em seu livro “Kurumi Guaré no coração da Amazônia”, onde se lê o seguinte trecho:

 

No que diz respeito à tradição, foi preocupação de meu pai ensinar-me a cultura de nosso povo. Desde criança, assim que comecei a entender as coisas, o que ele mais fazia era arranjar um tempo para contar histórias. Reunia os filhos, sentava-se num banco no meio do terreiro, me chamava para perto, e quando não era eu era o meu irmão caçula. Assim, como se estivesse se preparando para uma apresentação, pegava a flauta e começava a tocá-la bem devagarinho. Aquele som ganhava asas, se propagava pelo ar e chegava melodiosamente ao ouvido das pessoas. As crianças, curiosas, corriam para perto e com o maior respeito o rodeavam sentando-se no chão. Aquele era o ponto de partida para uma viagem ao mundo encantado do povo Maraguá. Quando estávamos todos sentados, meu pai detinha-se por um instante, fitava os olhos em cada olhar presente e começava a história. (p.25)

 

O resgate da memória, com a intenção de preservar a identidade dos povos, é uma constante na literatura indígena. Daniel Munduruku, um dos mais respeitados e conhecidos índios-autores, publicou diversos livros. Dentre eles, gostaria de destacar “Você lembra, pai?”, em que se reproduz a relação de uma criança indígena com o pai, mostrando o dia a dia de uma tribo, os conceitos passados às crianças, a forma como a morte é encarada na tribo... Destaco um trecho que achei particularmente interessante:

 

Você lembra, pai, quando você voltava da caçada sem nada nas mãos, por não ter tido sorte? Mas vinha com um sorriso no rosto, dizendo que tinha encontrado os seres da floresta, com eles tinha conversado e brincado, lembrando os tempos em que você era criança. Você lembra que a gente sentava ao seu lado só para ouvir suas histórias e nos encantar, esquecendo a fome ou a frustração  por você nada ter trazido para casa?

 

Também de Daniel Munduruku, são os livros “Contos indígenas” e “Kabá Darebu”. No primeiro, o autor faz uma seleção de mitos das várias etnias, com a intenção confessa de “dar uma pequena mostra desta riqueza” e para isso foram selecionados “mitos que representam a caminhada desses povos”. São eles: Munduruku, Guarani, Karajá, Terena, Kaigang, Tukano e Taulipang.

Dos Kaigang:

 

Os velhos do povo Kaigang contam  aos seus netos que, nos tempos criadores, a terra viveu um grande dilúvio. Choveu tanto, mas tanto, que ficou para fora apena o pico da serra Crinjijimbê. Por isso todos os seres humanos daquela época tentaram alcançar o topo para sobreviver. Muitos tentaram, mas alguns não conseguiram e morreram afogados. Seus espíritos, conforme contam os antigos, foram para o centro da serra onde fizeram sua morada.(p.45)

 

O dilúvio é um mito presente em várias civilizações e cada uma delas tem uma explicação diferente sobre ele. Note-se também a figura do velho, como detentor do conhecimento.

Kabá Darebu é um livro em que as imagens se sobrepõem ao texto e Daniel Munduruku procura ilustrar os costumes de sua tribo, por meio da história narrada pelo personagem que dá nome ao livro: um menino de sete anos.

 

Outro autor de destaque é Olívio Jukupé. Paranaense, formado em Filosofia pela PUCPR, mora na aldeia krukutu. Em “O saci verdadeiro” Jukupé traz a possibilidade de uma versão indígena do mito eternizado por Monteiro Lobato, narrado por Tio Barnabé, em “O saci”, como sendo de origem africana,. Um pequeno trecho de “O saci verdadeiro”, de Jukupé:

 

Este Saci de quem eles falam é bem diferente e é mau, tem vários irmãos, nasce da taquara, assusta os outros e anda com um cachimbo preto e uma carapuça vermelha na cabeça...

- Pois é, este não tem nada a ver com o nosso, o verdadeiro, aquele em quem nossos antepassados sempre falavam.

- E ele não era mau, não é mesmo, mamãe?

- Não, ele é bom e só aparece para pessoas muito boas e que precisam de ajuda. (p.31)

 

 

Em uma outra vertente, a poética,  Eliane Potiguara surge com “Metade cara, metade máscara”, seu livro de poesia, em que os poemas falam sobre a  situação da mulher indígena e de sua tribo, de modo geral. Tome-se como exemplo o poema a seguir;

 

Que faço com a minha cara de índia?

           

E meu sangue

            E  minha consciência

            E minha luta

            E nossos filhos?

 

            Brasil, o que faço com a minha cara de índia?

 

            Não sou violência

            Ou estupro

            Eu sou história

            Eu sou cunhã

            Barriga brasileira

            Ventre sagrado

            Povo brasileiro

 

            Ventre que gerou

            O povo brasileiro

            Hoje está só…

            A barriga da mãe fecunda

            E os cânticos que outrora cantavam

            Hoje são gritos de guerra

            Contra o massacre imundo.

 

A poeta tem um site, no qual se podem encontrar fotos e muitas informações sobre ela. Note-se que seu texto poético não tem ecos infantis.

Além desses, há vários outros índios que estão escrevendo, no desejo de divulgar sua cultura e de desfazer  ideias preconceituosas, errôneas, que foram cristalizadas, principalmente na colonização, e que são responsáveis pela forma equivocada como algumas pessoas veem os índios hoje. Um dos principais preconceitos diz respeito à preguiça. É comum ouvirmos as pessoas dizerem que índio é preguiçoso. Para desconstruir essa ideia, cedo a palavra, mais uma vez, a Daniel Munduruku, buscando trechos de um belíssimo texto encontrado em seu site (www.overmundo.com.br): Sobre o tempo e o trabalho

 

outro tempo é o presente. Para estes povos o tempo que importa é o presente. Meu avô afirmava sempre: “se o momento atual não fosse bom, não se chamaria presente”. Os indígenas são, portanto, seres do presente

O mais importante, no entanto, do que quero dizer é que quem vive o presente não tem necessidade de planejar. Planejamento é a tentativa de congelar os acontecimentos que virão. É ter a ilusão de que se está prevendo o futuro. E o futuro é pura ilusão.
Quando, em tempos antigos, os portugueses tentaram escravizar os indígenas esses não aceitaram aquela imposição. Trabalhar, para o português colonizador, era acumular. Acumulação é uma das dimensões do futuro. Acumula-se, poupa-se, guarda-se com a intenção de utilizar depois, amanhã. Os indígenas não sabem o que é o amanhã. E fugiram da escravidão. Os portugueses inventaram, então, que eles eram preguiçosos demais para aquela função nobre. E assim ficou.
Tempo e trabalho não são sinônimos. Trabalho e dinheiro também não. Trabalho não dignifica se ele escraviza. Trabalho demais nos dá tempo de menos. E tempo de menos tira da gente a alegria do encontro com os pais, com os filhos, com os amigos. Só o presente é um presente. O futuro é uma promessa que pode nunca chegar. Os indígenas sabem disso. Por isso vivem o momento.
Daí depreende-se também muitas explicações sobre a essência do ser indígena. Quem tem sensibilidade saberá distinguir diferentes pensamentos presentes em nosso mundo e descobrirá que a diversidade nos torna ainda mais coloridos.
E queria dizer que é muito mais difícil viver o presente. Exige muito mais de cada um. O sonho – o futuro – nos desobriga a olhar para o lado e ver a necessidade diária do outro. O futuro nos torna egoístas e mesquinhos. Só o presente nos compromete.

 



Nenhum comentário: